No Dia Internacional dos Povos Indígenas, Liderjane Kaxixó, liderança indígena em Minas Gerais e Camilo Niño, do povo colombiano Arhuaco , trazem reflexões sobre as relações dos povos com a natureza. Relatório da ONU prova que as taxas de desmatamento nas terras indígenas da América Latina e do Caribe são significativamente menores do que no restante do continente.
“Os nossos antepassados já ensinavam que não se pode extrair todo o bem da terra, porque ela desmorona, vira cratera. Nos passaram que a árvore vale mais em pé do que deitada. Essa é uma cultura que, ao longo dos anos, a gente passa de geração para geração. Cada etnia [indígena] tem o seu jeito de se relacionar com o mato, mas não deixa de ser um jeito de preservar”. Com essas palavras, Liderjane Kaxixó, que vive em terras indígenas na região de Martinho Campos, região Central de Minas, traduz os números apontados no relatório Povos indígenas e comunidades tradicionais e a governança florestal.
Produzido pela ONU em parceria com o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC) e lançado em março deste ano, o relatório mostra que grande parte — cerca de 35% — das áreas de floresta da América Latina e do Caribe estão em terras indígenas. Algo similar acontece com a Amazônia Internacional, onde quase 45% da mata que ainda está intacta está em territórios indígenas.
Além disso, o documento também aponta que as taxas de desmatamento na América Latina e no Caribe são significativamente mais baixas em áreas indígenas e de comunidades tradicionais onde os governos reconhecem formalmente os direitos territoriais coletivos. Na Bolívia, ele é 2,8 vezes menor do que nas terras não-indígenas, no Brasil é 2,5 vezes menos e na Colômbia 2 vezes.
Esses números tão significativos, entretanto, não são um resultado isolado. Nas diferentes culturas indígenas ao longo do continente, é possível traçar alguns paralelos e um deles é a preservação ambiental como resultado de um modo de vida, e não como objetivo isolado. “Cada etnia tem o seu jeito, mas não deixa de ser um jeito de preservar. Pode procurar qual aldeia que acha certo desmatar grandes áreas de cerrado, pantanal e pampa, ou um lugar de várzea”, reflete Liderjane.
Com um modo de vida e produção baseado no cuidado com a terra, os povos indígenas da América Latina são responsáveis por quase 30% do carbono armazenado nos bosques da região — e 14% dos bosques tropicais de todo o mundo. Apesar de serem fundamentais para a governança da maior parte da área de preservação do continente, Camilo Niño, liderança do povo indígena Arhuaco, chama atenção para a falta de representatividade indígena nas mesas de decisões.
“Somos atores políticos e não nos querem reconhecer assim. Nos querem como povos folclóricos, assim nunca vai haver um diálogo de construção. Quando falo da minha cultura, é bonito, mas se falo de direitos é diferente. Para que se possa ter êxito é preciso ter escuta”, denuncia Camilo. Ele também é ecólogo, mestre em desenvolvimento rural e secretário técnico da Comissão Nacional de Territórios Indígenas da Colômbia.
Nas últimas duas décadas, diversos pensadores têm levado para o debate acadêmico o pensamento decolonial, que valoriza sistemas de saberes livres do colonialismo eurocêntrico e recupera conhecimentos, principalmente de origem indígena e africana. Na mesma linha, Liderjane defende a valorização dos saberes decoloniais para a construção de políticas de preservação ambiental e de proteção aos povos originários.
“O não-índio precisa ouvir o indígena, o sertanejo, os caboclo, que estão na base. A gente não está noutro mundo. A gente tem o nosso saber e o não-índio tem a tecnologia que pode unir força com os nossos saberes para ajudar o meio que é nosso. O que falam que é ‘preguiça’ do índio, de não desmatar para plantar, é benfeitoria para todos”, resume.
Tanto para Camilo, quanto para Liderjane, a destruição dos territórios vai além da questão ambiental e atinge a própria sobrevivência dos povos e suas culturas. Para a maioria dos povos indígenas, a relação com a terra, mas as águas e com a mata passa pela ideia de sagrado. Desse modo, muito mais que uma necessidade social e econômica, o cuidado com a natureza é tido como uma responsabilidade de retribuição.
“Na cidade, é preciso pagar impostos, nas aldeias também. Mas pagamos pelo cuidado com as matas e com a retribuição espiritual. Se não paga, a natureza cobra com doenças e desastres. São duas maneiras um pouco opostas de compreender o mundo e de pensar como nos apropriamos dos recursos para melhorar a qualidade de vida. Essa maneira diferente de ver o mundo não quer dizer que humanos não precisam dos recursos naturais, que podemos acabar de vez com a mineração. Mas, temos que ter um planejamento de como diminuir o impacto e não destruir ecossistemas que são estratégicos para a nossa sobrevivência”, explica Camilo.
O relatório da ONU e do FILAC também trata sobre a importância dos investimentos públicos para políticas de reconhecimento territorial para os povos indígenas. Afinal, os melhores resultados foram observados nos territórios de povos indígenas com títulos legais coletivos reconhecidos.
A formalização também traz impactos diretos na redução da emissão de carbono. Entre 2000 e 2012, os territórios registrados evitaram a emissão 42,8 e 59,7 milhões de toneladas métricas (MtC) de emissões de CO2 a cada ano. Isso, considerando os resultados de Brasil, Colômbia e Bolívia. Segundo a análise, isso seria equivalente a tirar de circulação entre 9 e 12,6 milhões de veículos durante um ano.
Além de serem mais efetivas, as políticas voltadas para os registros das terras indígenas também são mais baratas. O relatório considera que o custo de titulação de terras indígenas pode ser de 5 a 42 vezes menor do que o custo médio de compensação de CO2 por meio da captura e armazenamento de carbono fóssil, tanto para usinas a carvão como a gás.
Mesmo assim, ainda são escassos os investimentos com esse objetivo. Entre 2016 e 2018 aumentou 150% o desmatamento em terras indígenas brasileiras. No mesmo período, as terras preservadas em áreas indígenas diminuíram 20% na Bolívia, 30% em Honduras, 42% na Nicarágua e 59% no Paraguai.
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