“Eu fiquei sabendo por uma reportagem e pelos próprios atingidos que ia ter Assessoria Técnica, lá em Três Marias. Já vinha chegando a conversa que ia ter, mas sobre a eleição foram as próprias ATIs que nos falaram. A gente estava ansioso demais, a gente não sabia o que vinha, só que a gente tinha sido atingido”. É assim que Lionete Feitosa, do Recanto de Laranjo (Pompéu), lembra como chegaram as primeiras informações de que as pessoas de sua comunidade que foram atingidas pelo rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, teriam direito às Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), e que as organizações seriam escolhidas pelas próprias comunidades.
No início deste segundo semestre de 2023, completam-se 4 anos desde que o Instituto Guaicuy foi eleito para atuar como ATI das comunidades do Baixo Paraopeba e da região da represa de Três Marias. Uma ATI é, hoje, um direito das pessoas que são atingidas por barragens em Minas Gerais. Ele foi garantido pela Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB), que foi instituída em 15 de janeiro de 2021 por meio da Lei nº 23795.
No caso do rompimento da barragem da Vale no Complexo Minerário do Córrego do Feijão, anterior à aprovação da PEAB, o direito à ATI foi conquistado com muita luta popular. “O Guaicuy acompanhou esse processo desde o começo, na luta popular e na pressão para a aprovação da lei Mar de Lama Nunca mais [que deu origem à PEAB]”, conta Marcus Vinícius Evaristo, gerente organizacional do Instituto.
A homologação da eleição do Guaicuy, em relação à área 4, foi no dia 06 de agosto de 2019 e, em relação à área 5, no dia 29 de setembro de 2019. A liberação dos recursos necessários para a atuação das ATIs aconteceu em 03 de abril de 2020. As votações aconteceram nos dias 15 de julho de 2019, em Curvelo (Região 4) e 25 de agosto, em Morada Nova (Região 5).
Em julho e agosto de 2019 o Instituto Guaicuy foi eleito, respectivamente, como ATI das comunidades atingidas pelo desastre da Vale no Baixo Paraopeba (Região 4: Curvelo e Pompéu) e na região da represa de Três Marias (Região 5: São Gonçalo do Abaeté, Felixlândia, Morada Nova de Minas, Biquinhas, Paineiras, Martinho Campos, Abaeté e Três Marias). Antes de chegar à votação popular, foi preciso passar por etapas de credenciamento e aprovação do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), após comprovação de critérios como idoneidade e aptidão para o trabalho.
A partir daí, as organizações interessadas puderam ter acesso às comunidades atingidas para se apresentar e iniciar o relacionamento com as pessoas e o reconhecimento do território. Nas datas marcadas para as eleições das Regiões 4 e 5, as pessoas puderam ir até os locais de votação em ônibus contratados pelo Ministério Público de Minas Gerais, onde assistiram às apresentações das organizações candidatas antes de dar seus votos.
“Nessa apresentação, focamos muito na relação do rio, no entendimento do peixe como indicador da qualidade de vida do rio, dos pescadores, das comunidades. A saúde coletiva também foi muito importante. A gente apresentava, as pessoas faziam perguntas e a gente respondia com muita propriedade, com valorização do saber popular e entendimento do rio como indicador de vida”, explica Marcus Vinicius.
Para Lionete, a preocupação do Guaicuy com a qualidade das águas e dos peixes foi fundamental para que a comunidade escolhesse pelo Instituto, já que esse era um grande ponto de preocupação da região que, antes do rompimento, vivia com base na cadeia pesqueira. “A gente sabe como é a mineração, o pessoal queria saber quando ia tirar a mineração da água, mas a gente sabia que não dava pra saber certinho”, lembra ela, que ainda conta que ficou satisfeita com a resposta dada pelos profissionais do Guaicuy.
Outro ponto que marcou as votações foi a aproximação entre as pessoas atingidas de diferentes comunidades, propiciada pelo encontro. “No dia da eleição achei bom, tinha muita gente. De Morada Nova, Paineiras, Felixlândia, Pompéu, Vau das Flores, Junco… Gente pra todo lado. Nós saímos daqui 8h da manhã e ficamos até 18h”, lembra Marceliana Alves, pescadora da comunidade de Biquinhas, que vive próximo à represa de Três Marias.
Ao longo desse período, diversos desafios e transformações atravessaram o trabalho das ATIs, que tem como principal missão fomentar a participação informada das pessoas atingidas na busca pela reparação integral. Um desses grandes desafios surgiu logo no começo: após a eleição, a liberação oficial das verbas pela Justiça veio no começo de 2020, quando o Brasil e o mundo já enfrentavam o coronavírus. “A fase de estruturação aconteceu no auge da pandemia, era fechamento total, não tinha nem cartório funcionando. Ao mesmo tempo, havia uma grande espera dos atingidos, então foi um momento muito delicado”, pondera Marcus.
Outra dificuldade encontrada pela equipe foi a grande extensão territorial da área assessorada, o que fez com que o trabalho de mapeamento das comunidades atingidas fosse um pouco mais demorado. Esse processo foi fundamental para o reconhecimento de pessoas e comunidades e para a garantia de direitos.
“No início, boa parte das pessoas da Região 5 não queriam ser identificadas como atingidas, com medo do preço do peixe baixar mais ainda. As pessoas reconheciam os danos, mas elas tinham medo de que o turismo e o preço do peixe caíssem ainda mais, com medo do estigma. Então, outro desafio era como trabalhar esse direito sem implicar na ampliação dos danos”, relembra o gerente do Guaicuy.
A identificação dessas comunidades ajudou a conquistar direitos, como a inclusão delas nas ações do Acordo de Reparação. Entre as outras conquistas do trabalho do Guaicuy no território – assim o como das demais ATIs que atuam no caso – ele também cita o reconhecimento do atingimento do povo indígena Kaxixó, de Martinho Campos; a inclusão de novas formas de comprovação dos danos; e a ampliação do antigo critério territorial.
Agora, para Marcus Evaristo, o desafio é garantir que a luta por direitos continue mesmo após o fim dos trabalhos das ATIs. Para ele, a meta é que as pessoas tenham governança sobre os recursos conquistados e, por isso, parte do trabalho do Guaicuy é voltada para fomentar a auto-organização das comunidades, deixando um legado de mobilização no território.
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