Ao abordar a crise da mineração que afeta Minas Gerais, Andréa Zhouri reflete sobre a possibilidade de se criar e recriar formas diferentes de vida em sociedade, expondo a falácia da dependência da mineração. Em sua palestra no Seminário e Encontro Na Contramão da Ideologia da Mineração: Tragédias e Insustentabilidade, a professora da UFMG, que é Antropóloga e doutora em Sociologia, fez um convite à reflexão sobre o futuro que estamos construindo para Minas Gerais. A seguir, alguns trechos extraídos de sua conferência.
Andréa Zhouri é professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, coordenadora do GESTA
A crise é a maneira como a história contemporânea é narrada. Como instância em que o “real” se faz presente, ela apresenta um componente de revelação, constituindo-se como um “ponto cego”, por assim dizer, um não-lugar que permite levantar questionamentos, tais como: o que é que deu errado? Houve quebra/ruptura de uma ordem? Que avaliações nós podemos fazer? Portanto, como princípio revelador, a crise traz à luz o que estava latente ou escondido. E propicia a emergência de discursos que disputem narrativas sobre a verdade.
Eu disse que nossa abordagem deve ser realista, porque a crise assim o exige. E nós só podemos ser realistas diante da crise a partir da crítica, uma crítica radical. Radical não em função dos extremos, mas no sentido de irmos à raiz dos problemas.
Em 1980, o pensador Jean Pierre Dupuy escreveu um texto chamado: Introdução à crítica da Ecologia Política. Nesse livro, ele pergunta mais ou menos assim: “queremos um capitalismo ecológico ou aproveitaremos a crise ecológica para instaurar outra lógica social?“ Pergunta semelhante foi feita no mesmo período por Karl Polanyi no livro A grande transformação. Nos anos subsequentes, entretanto, assistimos à opção pela “ambientalização” do capitalismo através da ideia de desenvolvimento sustentável.
Mais de 30 anos depois, sabemos hoje onde isso nos trouxe. Tal como nos anos 1980, talvez seja o momento de indagar: considerando que a mineração está em crise e reconhece o momento crítico, vamos aderir às propostas reformistas da mineração, a mineração dita “responsável” ou a mineração com “selo de sustentabilidade” – ou seja, caminhos restritos às opções tecnológicas do tipo: barragens a seco ou barragens a jusante – ou vamos aproveitar a crise para propormos uma mudança de lógica, em que a água, os ecossistemas, as áreas comuns, a vida comunitária, a vida humana, a diversidade cultural, os territórios diversos possam, enfim, gozar de autonomia e definir o seu destino a partir de práticas econômicas distintas e criativas? Seriamos mesmo dependentes do minério? Seriamos nós os ingênuos ou aqueles que nos identificam como tal ao acreditarem numa existência sem água? Seria uma ingenuidade a proposta radical ou uma necessidade realista?
Penso que temos que disputar essas narrativas. Evocar Minas das águas e dos gerais. Trazer a lume o que o discurso dominante esconde, subjuga, elimina. Navegar pelas áreas rarefeitas dos discursos, quebrar suas falácias, sua lógica. Olharmos para a realidade e apreende-la em suas diversas manifestações. Recusar o léxico da colonização mineral e mobilizarmos uma gramática mais afinada com as dinâmicas sócio-espaciais e emancipatórias. Consideremos a palavra impacto. Qual o alcance dessa categoria para designar os efeitos da mineração quando aquilo que observamos se revela, de fato, como destruição, prejuízo, perda, sofrimento?…No mesmo sentido, Área de Autossalvamento (ZAS) se apresenta como violento eufemismo para Zonas de Auto-sacrifício; Zonas de Morte. Vista de frente, a pobreza dos municípios do Quadrilátero Ferrífero denuncia o mito da mineração como desenvolvimento.
Com efeito, a era do dialogismo como princípio de governança foi a era da colonização ambiental via categorias da dominação, uma harmonia coerciva sob a égide do chamado desenvolvimento sustentável. Por isso a radicalidade se faz necessária para uma visão realista que abra caminhos de mudança para, segundo Ailton Krenak, podermos adiar o fim do mundo.
Nas palavras de Eduardo Gudynas, a mineração é uma amputação da natureza. Ela é atividade primitiva. Não tem nada de desenvolvimento para o lugar onde é realizada. Ela se resume a cavar buraco para extrair pedra a ser enviada pra outros lugares. Ela extrai a terra e a água e não deixa nada no lugar. A natureza, os ecossistemas não se recompõem. Por isso a mineração é uma amputação, uma verdadeira mutilação.
Artigo originalmente publicado na Revista Manuelzão nº 86. Para ler a edição na íntegra, clique aqui
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