Ao longo do rio, milhares de famílias convivem com a dificuldade no acesso à água; situação foi agravada após o rompimento da barragem da Vale em 2019
“A gente tinha o costume de levar o gado para beber água no rio [antes do rompimento da mina da Vale do Córrego do Feijão, em janeiro de 2019]. Depois que estragou o rio, se a gente levar o gado, ele vai ficar contaminado. Então o gado tem que beber água da cisterna. Aqui cada um tem a sua, mas na seca ela não aguenta mesmo, meus pés de alface já morreram todos sem água” – Moradora do assentamento Queima Fogo (Pompéu) .*
“Eu trabalhei a minha vida inteira para aposentar e construir meu rancho para pescar e descansar, era o meu sonho. Mas tem um ano e meio que eu não entro na água. Meus netos vêm passar o final de semana, eles querem nadar, pescar e eles pedem toda hora. Como que explica que não pode? Eu sei o risco que a gente tá correndo” – Morador do Retiro de Baixo (Pompéu).
“Desde que a barragem rompeu, quase todo final de semana a gente fica sem água. Quando ela volta na segunda, ela vem suja, leitosa. Essa é a água que a gente bebe, que a gente faz comida. A gente não sabe por que isso está acontecendo, nem se essa água pode beber”– Moradora de Cachoeira do Choro (Curvelo)
Os três depoimentos destacados nessa matéria são de diferentes pessoas. Diferentes problemas, diferentes realidades sociais, diferentes territórios, diferentes histórias de vida. A seu modo, cada uma delas enfrenta conflitos originados na violação de um direito que deveria ser básico a todos: o direito à água. Desde o rompimento da barragem da Vale em Córrego do Feijão (Brumadinho), que contaminou o rio Paraopeba em janeiro de 2019, essas três pessoas — e milhares de outras famílias — vivem todos os dias as consequências de um crime continuado. Atualmente, a mineradora é ré em processos na Justiça, condenada a reparar todos os danos causados pelo colapso do complexo minerário.
Muito mais do que para apenas matar a sede, a água se desdobra em diversos usos essenciais para a sociedade. Segundo informações da Agência Nacional de Águas (ANA), no Brasil, a água é principalmente utilizada para práticas como irrigação, navegação, turismo, aquicultura, lazer e abastecimento. Além disso, ela também é parte de grande importância no processo de atividades industriais, como a mineração e a geração de energia elétrica.
Ao longo do rio Paraopeba, pessoas atingidas de todos os perfis enfrentam uma realidade, muitas vezes, sem acesso a água para esses ou outros usos. Para moradora da comunidade do Projeto de Assentamento Queima Fogo, na região Central de Minas Gerais, a contaminação do rio Paraopeba prejudicou a disponibilidade de água para matar a sede do gado. “O caminhão da Vale [que distribuía água potável para os atingidos da região] não passa tem mais de três meses, essa água a gente usava para os animais, para a horta e para higiene. Cada cabeça de gado bebe 20 litros por dia, a gente já teve que deixar de usar para ter água para eles”, relata.
Petição
A moradora do Queima Fogo não é a única prejudicada pela suspensão do caminhão de água potável, sem aviso prévio ou justificativa apresentada. Por isso, no final de junho, o Ministério Público de Minas Gerais protocolou uma petição que reuniu diversos relatos similares ao dela. Consta no documento que, no que diz respeito aos atingidos do baixo Paraopeba, assessorados pelo Instituto Guaicuy, “11 pessoas relataram corte [do fornecimento de água], mesmo antes da pandemia de Covid-19”.
A petição também destaca que, além do acesso a água ser um direito essencial à vida, ele se torna particularmente importante nesses tempos de pandemia. “Sabemos como a água, além de ser um direito humano essencial à vida, especialmente nesses momentos de pandemia, é fundamental na prevenção e processos de higienização para combate ao novo Coronavírus”.
Desinformação
No caso dos moradores do Retiro de Baixo e de Cachoeira do Choro, além da dificuldade no acesso a água em todos os seus usos, outra questão liga ambos os casos: a desinformação ou a falta de dados completos e embasados. Para um dos moradores, aposentado que vive na região, os números divulgados pela Vale, mineradora responsável pelo rompimento da barragem, não são confiáveis e, por isso, ele segue sem utilizar as águas do rio, seja para irrigação, pesca ou lazer.
“Os moradores daqui continuam pescando, comendo peixes e nadando, mas ninguém provou se a água está poluída ou não. Se tiver, as pessoas estão se contaminando. Muita gente acha que não passou mal agora e tá tudo bem, mas a contaminação é a médio e longo prazo. Mais gente ainda pode estar morrendo por conta do rompimento. A análise da Vale para mim não interessa, eu não confio”, expõe o aposentado.
Ele lamenta a situação, já que tudo que ele queria era poder, junto com a família, aproveitar a sua aposentadoria na beira d’água. Porém, entremeio às inseguranças em relação à qualidade e à segurança das águas, ele teme pela saúde e bem-estar dos seus e, por isso, opta por se manter longe da represa. Por enquanto, as águas são apenas para admirar à distância. Cerca de 40 km dali, em Cachoeira do Choro, outra moradora também sofre para confiar na qualidade da água que chega em sua casa.
Análise da água
A divulgação de informações confiáveis sobre a água do rio Paraopeba, para quem vive em seu entorno, é uma das principais prioridades do Instituto Guaicuy, que trabalha como assessoria técnica das áreas 4 e 5 de atingidas pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Estamos trabalhando na viabilização de uma visita em campo para as análises ambientais que são necessárias para avaliar a água. A análise de água é o ponto central para fazermos qualquer discussão relacionada à qualidade”, aponta Rodrigo Lemos, coordenador de análise ambiental do Instituto.
A princípio, o planejamento da equipe é de que a comunidade de Cachoeira do Choro seja a primeira a ser visitada para a análise ambiental da água. O objetivo é de atestar a potabilidade da água e entender os fatores que possam estar causando os problemas relatados pelos moradores. “Temos várias hipóteses de trabalho, mas todas elas demandam que a gente esteja em campo. Mais do que o aspecto visual, que já é extremamente preocupante, temos que ver o que tem nessa água e se ela está de acordo com os padrões de potabilidade. Essa é a questão essencial que temos que responder. Nós estamos terminando os processos de contratação e a expectativa é a gente consiga estar em campo ainda em agosto”, explica o coordenador.
Posicionamento da Copasa
A Copasa, concessionária responsável pela região, alega, por meio da assessoria de imprensa, que a água distribuída atende a todos os padrões de potabilidade preconizados pelo Ministério da Saúde e que “eventualmente, podem ocorrer paralisações não programadas no abastecimento em decorrência de algum problema eletromecânico dos equipamentos ou interrupções do fornecimento de energia elétrica nas unidades de bombeamento”.
A nota enviada também explica que “a descarga descrita pelos empregados é referente à limpeza das redes de abastecimento e que a coloração esbranquiçada na água é causada pela pressurização nas redes de abastecimento de Cachoeira do Choro. Com elevação da pressão, pode ocorrer a incidência de oxigênio dissolvido e a água fica com esse aspecto. Colocada em um recipiente, a água retorna ao seu aspecto natural em cerca de um minuto”.
Em todas as suas possibilidades, a água é mais do que um bem, ela é um direito fundamental da humanidade. Em um contexto pandêmico, no qual a higienização é a forma mais eficaz de profilaxia, a dificuldade no acesso ganha um novo grau de importância como desafio para a saúde pública, como reflete o coordenador de articulação institucional do Instituto Guaicuy, Matheus Valle. “Essa é uma pauta [do direito à água] importante e central em países como o nosso, onde muita gente não tem acesso à água. É uma questão de saúde, a expectativa de vida muda radicalmente quando há acesso contínuo à água de qualidade. O contexto de covid traz outra dimensão, a gente sabe que o acesso a água é essencial para lavar a mão, por exemplo”.
No contexto dos moradores das áreas 4 e 5 de atingidas pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério da ré, Matheus Valle defende que haja, pelo menos, o restabelecimento das condições anteriores ao rompimento. “Estamos falando de populações vulneráveis, que sentem o impacto de uma forma muito mais intensa. Uma pessoa que não tem como ir ao supermercado, não tem dinheiro para comprar um fardo de água mineral. O risco é que ela apele para fontes menos seguras e possa ter complicações”, argumenta Valle.
*Os nomes foram ocultados para preservar a identidade dos entrevistados
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