Instituto Guaicuy

De Brumadinho à Três Marias: Aprendendo a ficar de pé e falar, mesmo pesando o coração

4 de fevereiro, 2021, por Comunicação Guaicuy

Sarah F. Santos

Casas grandes, pequenas, de tijolo, de madeira, parte de tijolo e parte lona, rancho, casa de descansar, casa de morar, casa de ser feliz, de toda sorte plurais e de igual maneira, incalculáveis em valor. Estrada adentro a paisagem se compunha com graça até chegar a São José do Buriti, o lugar onde estávamos marcados para nos encontrar. Toda arquitetura, natural ou projetada por pessoas, no meio das veredas de um verde vibrante, contrastava com o amargor daquele dia 25 de janeiro, marco do rompimento da Barragem de Rejeitos de Minério do Córrego do Feijão. São José do Buriti, situada em Felixlândia-MG, é umas das comunidades da área 5 leste, que compreende os municípios banhados pela Usina Hidrelétrica de Retiro Baixo e de Três Marias. 

A mansa paisagem pode até esconder o perigo da contaminação à espreita, mas não esconde a potência de luta, presente no semblante de pessoas como Dona Ana Maria Macedo de Santana e Seu Cosme Ferreira de Santana,  pescador e pescadora que estão na luta pela reparação integral dos danos. Para o casal, a luta coletiva não é escolha, mas a única via: “A gente não é parente, mas é o mesmo que ser irmão, é lutador que nem a gente”, diz Cosme sobre a importância da solidariedade entre os atingidos e atingidas. “A Vale fez uma tragédia e não quer assumir a responsabilidade dela”, acrescenta.  

Falta de água limpa nos copos e nas panelas, falta de silagem para os animais, atraso ou cancelamento indevido no pagamento do auxílio emergencial, dentre outros problemas, tem tornado a luta pela reparação integral das pessoas atingidas ainda mais dolorosa. Como afirma Ormindo Brito, líder da Associação Comunitária, “a Vale está aí viva, contribuindo para a destruição de muitas vidas. Só física? Não, mas é morte espiritual, financeira,  morte de sonhos. Ela está matando tudo”. 

“A vale ceifa passados, presentes e futuros”

Enquanto colocavam os barcos na água, para marcarmos o dia com uma Barqueata simbólica, seu Gaspar, um dos organizadores da Barqueata de Nossa Senhora da Aparecida, perguntava a seu Ormindo, “ Será que a Vale vai mesmo pagar nossos direitos?”. Ormindo se apressa na remada para se aprochegar mais de Seu Gaspar e com orgulho responder “Sabe essas audiências que estão ocorrendo pra fazer um acordão? Se não fosse a gente pressionando já teria passado”.  É como diz Seu Cosme,  “o importante é não desistir” – O acordo referido é o acordo que corre em confidencialmente entre o estado de Minas Gerais e a Vale, sem participação dos atingidos.

Ormindo é um homem alegre, mas  sério nas palavras quando o assunto é o desastre, “A Vale está destruindo as famílias não só agora no presente, mas no futuro também”. São dois anos em que os prejuízos se acumulam num efeito cascata. A lama saiu arrasando o curso do rio, esmagando memórias, manifestações culturais, encontros, turismo, cadeias econômicas e, como diz Ormindo, “sonhos”. 

Manifestações, como a da Barqueata, é uma das muitas prejudicadas por conta do rejeito que até hoje corre invisível e silencioso. Sem rio limpo, de que jeito ter barqueata? A insegurança é grande. Na Área 5 Leste, o mestre da cultura popular, Tinga, dá conta de dizer que depois do rompimento a cultura não é a mesma, foi tudo prejudicado. Festa de São João, Dança de São Benedito, Folia de Reis, Barqueata, Carnaval de São José do Buriti, Congado, Dança de São Gonçalo, Encontro das Nações, são algumas das manifestações que sentem o peso da poluição causada no 25 de janeiro de 2019. 

A vida por essas bandas, não faz jeito se não se entrelaça. Dona Ana mesmo, é pescadora, mas também a pilota aclamada e respeitada na barqueata. Segundo Seu Gaspar e Ormindo, seu Cosme consente, ela é central para o momento, pois fica responsável por carregar as pessoas. E é assim que ela vê não apenas a venda do seu peixe decair, dificultando sua vida, mas também vê arrasada sua cultura e a prática de sua fé. É como disse certa vez o Ogan João Carlos Pio “Sem folha e sem água não há Orixá”, se referindo aos prejuízos causados ao povo de terreiro. 

“Queremos ter segurança para vender o peixe” 
Nos seus 30 anos de pesca, Dona Ana diz que ainda sente o peso do machismo, “não é fácil  ser mulher pescadora”, o que nos faz dimensionar a identidade de ser mulher, pescadora e atingida pela mineração. Entre as milhares de dificuldades, ela aponta “A gente quer trabalhar consciente que está passando um produto, um alimento, que não está contaminado e dar mais segurança para as pessoas que compram”.

Até o momento, as comunidades reclamam de falta de informação e pesquisas seguras sobre a água. “Queria colocar uma peixaria, mas num posso porque o ruim é a venda. As pessoas vem de BH e perguntam se está contaminado e a gente diz que não sabe, mas a gente também não pode obrigar ninguém a comprar nosso peixe”, lamenta seu Cosme, com muito pesar afirmando que a venda do peixe caiu muito. 

O que as pessoas das comunidades reivindicam é transparência no levantamento dos danos causados, pois a insegurança sobre a água prejudica em efeito dominó. É o turismo que tá fraco, é a diminuição na venda do peixe, são os locais vazios que prejudicam a venda de artesanato, que prejudica as manifestações culturais, que acaba tirando o lazer das pessoas e por aí vai. Para a população mesmo se for comprovado que a água não está contaminada os danos já foram causados pela insegurança e consequente desvalorização. 

A insegurança vai empalidecendo  o brilho de suas riquezas: a roda do peixe frito na beira d’água, as carrancas e seus escultores, as danças, os entanhadores de redes de pesca, os contadores de lendas e contos, as rezadeiras, o povo de santo, nada é mais como antes. Só permanece a certeza de que o rio corre e que  na sua correnteza a justiça virá. 

A força da cultura popular vai correndo pelo rio em busca de justiça, mesmo que doa como Afirma Cosme “Infelizmente tem que ser assim, falar com o coração doendo”, afirma o pescador que já entornou várias doses de cachaça com Manuelzão. Para Dona Ana, ele “é um segundo Manuelzão”. E nós não duvidamos pois cremos que vão se multiplicando estrada afora o Esperançar de muitos Manuels Nardis e de muitas mulheres de batalha e de riso.

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