O direito à consulta livre, prévia e informada dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) sobre quaisquer ações ou empreendimentos que possam afetar seus territórios ou modos de vida é reconhecido na legislação brasileira desde 2004. 20 anos depois, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, publicou o Decreto 48.893/2024, que impõe condições específicas para a consulta prévia, restringindo os direitos conquistados pelos povos tradicionais brasileiros, e dando ainda mais poder às empresas.
Os Povos e Comunidades Tradicionais são definidos como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais. Possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica”. Entre eles, estão os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, ciganos, etc. Para orientar a consulta prévia de qualquer organização a esses povos, existem os Protocolos de Consulta, elaborados coletivamente pelas comunidades, respeitando sua organização e autodeterminação.
O governo já havia tentado atacar o direito dos à consulta prévia dos PCTs em 2022, mas a resolução anterior foi revogada após mobilização popular.
Organizações se manifestam
Diversas organizações de defesa de direitos humanos e do meio ambiente publicaram uma carta aberta de repúdio ao decreto, na qual destacam a inconstitucionalidade do decreto, uma vez que as disposições do tratado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a partir da sua aplicação no Brasil, “são obrigatórias e nenhum órgão governamental pode descumpri-la ou limitar os direitos nela abarcados. Além disso, não houve nenhuma participação ou consulta às Comunidades, violando o artigo 6° da mencionada Convenção”. A carta também denuncia a atuação do governo estadual em prol do avanço da mineração predatória, ignorando as graves consequências já anunciadas para a população e o meio ambiente; e exige a revogação e anulação imediata do decreto.
Segundo a manifestação, o recente decreto do governo Zema limita o direito de Consulta Prévia apenas aos povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais certificadas pela FUNAI, Fundação Palmares ou Comissão Estadual, e condiciona a definição de territórios tradicionais ao reconhecimento formal pelo Estado (violando o direito de autodeterminação). Além disso, nega o direito de consulta a PCTs em áreas urbanas, afetando grupos como povos de terreiro, indígenas urbanos, acampamentos ciganos e comunidades carroceiras. Isso facilita, por exemplo, o avanço do licenciamento do Rodoanel na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O texto ainda condiciona a exigência de consulta prévia a uma distância máxima de 3km dos empreendimentos, ignorando os impactos sistêmicos e difusos no ar, na água e nas espécies que afetam os territórios.
Entre os pontos críticos, o decreto também transfere para as empresas privadas a responsabilidade de conduzir a Consulta aos Povos e Comunidades Tradicionais para seus projetos, o que, além de estar em desacordo com a Convenção 169, aumenta o risco de violência e assédio a esses povos em seus próprios territórios.
Observatório de Protocolos
Liana Amin, professora de Direitos Humanos na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), é uma das fundadoras do Observatório de Protocolos Autônomos, que mantém dezenas de Protocolos de Consulta de Povos e Comunidades Tradicionais de todo o mundo (a maioria da América Latina) para leitura e download gratuitos. O site também traz notícias e hospeda publicações diversas relacionadas ao tema, como tratados e declarações internacionais, livros, artigos, teses e dissertações. O Observatório também lançou uma nota apontando as violações de direitos no Decreto 48.893/2024, em conjunto com a Associação Brasileira de Antropologia.
Ela conta que a iniciativa de criar o Observatório com outros pesquisadores e pesquisadoras surgiu em 2017, época em que estavam sendo publicados os primeiros Protocolos de Consulta brasileiros. “[Nos] sentimos na missão de garantir a validade jurídica daqueles instrumentos. Éramos estudiosos sobre o tema, advogados populares, antropólogos, integrantes das comunidades, advogados indígenas e quilombolas. Para além dos nossos grupos, o Observatório foi formalizado como um projeto de pós-doutorado e depois institucionalizado como projeto do CNPQ”, afirma.
Liana ressalta que a maior preocupação dos integrantes do Observatório, atualmente, é a distorção dos protocolos. “O que está acontecendo é cooptação, assédio das empresas e instituições para que os povos elaborem protocolos logo; chegam minutas de protocolos prontos. Isso não é autêntico, o protocolo deve ser feito de acordo com cada cultura”, diz. Ela relata que “grandes empresas e escritórios de advocacia se deram conta da grandeza desse documento, e virou uma imposição de elaboração do protocolo”. Ela também lembra que a falta do Protocolo de Consulta não significa que uma comunidade recusa o direito à consulta. “O Estado é obrigado a realizar um processo de consulta genuíno, mesmo que o Protocolo não esteja formalizado”, cita.
Povos e Comunidades Tradicionais atingidos pela mineração
No processo de reparação pelo rompimento da barragem da Vale em 2019, o Instituto Guaicuy presta Assessoria Técnica Independente a alguns Povos e Comunidades Tradicionais na região do Baixo Paraopeba e da Represa de Três Marias. Você pode conhecê-los nesta matéria da 12ª edição do Piracema. O Protocolos de Consulta do Povo Kaxixó, elaborado com o auxílio do Guaicuy, como Assessoria Técnica Independente, está disponível no Observatório de Protocolos Autônomos. Já o Protocolo do Quilombo Saco Barreiro, que também contou com o apoio do Guaicuy, pode ser acessado no nosso site.
Imagem: Daniela Paoliello/Guaicuy.
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