“A Ilusão da Abundância” trata sobre a exploração ambiental como nova forma de colonialismo a partir de experiências de mulheres em lutas coletivas
A mineração predatória na América Latina é o fio condutor que atravessa fronteiras e une as vidas de Carolina no Brasil, Máxima, no Peru e Bertha, na comunidade indígena Lenca em Honduras. A história dessas três mulheres que dedicam suas vidas na luta por justiça socioambiental e em defesa do meio ambiente é contada no documentário “A Ilusão da Abundância”, dirigido pela colombiana Erika Gonzales Ramires e pelo belga Matthieu Lietaer. No Brasil, o filme está disponível online para ser assistido gratuitamente.
A narrativa aponta para os papéis exercidos pelas mulheres no cuidado, não só de si mesmas e de suas famílias, mas também de suas comunidades, seus povos e da terra como um todo, sob a ótica do ecofeminismo. “São muitos movimentos e histórias de vida diferentes que, ao mesmo tempo, estão relacionados. Eu acho isso bastante interessante no filme, como eles conseguem conectar histórias diferentes a partir de padrões de violações de direitos e essa entrega das mulheres no campo e na cidade e que, cotidianamente, exercem a tarefa do cuidado em seus territórios”, analisa Carolina de Moura que, no filme, mostra sua luta contra a mineração predatória em Brumadinho (MG).
As lutas de cada uma das personagens, que arriscam suas vidas em prol da defesa do Meio Ambiente, são narradas para ilustrar como a exploração ambiental no continente representa um neocolonialismo, no qual países ricos exploram os recursos naturais e trazem consequências irreparáveis para inúmeras comunidades vulnerabilizadas na América Latina. No documentário, essa relação é explicitada com o que os diretores chamam de “novos conquistadores”.
A produção multinacional foi exibida não só nos países retratados, mas também em cidades europeias, a fim de propagar a mensagem da defesa socioambiental. Essa rodada de lançamento foi acompanhada por Carolina, que conversou com o Guaicuy sobre a sua experiência nos bastidores e também sobre a temática do documentário. Confira a entrevista abaixo!
Bertha Zuñiga é filha de Berta Cáceres, uma ativista socioambiental que foi assassinada em 2016 após realizar uma série de denúncias e enfrentamentos à construção de uma barragem hidrelétrica em um território sagrado para o povo indígena Lenca, em Honduras.
Após a morte da mãe, Bertha se dedica não só ao seu legado ambientalista, mas também à busca por justiça pelo crime.
A indígena peruana Máxima Acuña foi a vencedora do Goldman Environmental Prize de 2016 por sua luta contra a maior mineradora de ouro da América Latina, a Newmont Mining Corporation, que desde aquele ano tenta expandir suas atividades em uma área preservada, onde vive Máxima.
Ao recusar vender suas terras para a empresa, ela passou a sofrer diariamente com assédios, acusações e ameaças veladas.
O ambientalismo sempre esteve presente na vida da jornalista Carolina de Moura, que já se dedicava a combater a mineração predatória em Minas Gerais quando viu sua vida ser atravessada pelo maior desastre-crime socioambiental do Brasil. Moradora de Brumadinho, viu de perto a morte de 272 pessoas após o rompimento da Barragem da Mina do Córrego do Feijão, operada pela Vale.
Guaicuy: Como foi o convite para participar do filme?
Carolina: Em novembro de 2018, até antes [do rompimento] da barragem, a gente organizou o encontro do Observatório de Conflitos Mineiros na América Latina (OCMAL), uma rede que reúne várias organizações e movimentos dessa temática e veio muita gente de fora. Logo depois do rompimento, a gente se inteirou do envolvimento direto da Tuv-Süd [empresa alemã] e como o pessoal tinha acabado de vir aqui e a Articulação do atingidos pela Vale já tinha articulação com ativistas da Alemanha, fomos convidados a fazer um trabalho de responsabilização da Tuv-Süd.
Como fomos lá [em Munique], também fizemos viagens por outros países, chamando atenção para a questão da mineração e a necessidade de responsabilização das empresas. Foi nessa ocasião que conheci a Erika, diretora do documentário e ela me convida pra fazer parte do filme.
Guaicuy: Você hesitou ou teve medo de participar das gravações?
Carolina: Naquele momento, a gente avaliou em coletivo tomamos a decisão de que a gente não podia ficar calado, tinha mais de dez anos que a gente estava atuando, fazendo as denúncias e eu não podia me esconder numa oportunidade dessa, era a responsabilidade de seguir o trabalho e me colocar a serviço, colocar meu corpo na defesa da natureza e dos direitos humanos
No calor, no trauma, na dor, na revolta, estava tudo fervendo e a gente queria fazer tudo o que era possível.
Guaicuy: Como foi a experiência da gravação?
Carolina: Depois que eles gravaram, demorou quase três anos para o primeiro corte do filme e nesse período muita coisa aconteceu. Quando chegou o primeiro corte, já era outro momento e eu hesitei muito, cheguei a querer sair, mas acabei aceitando. É uma experiência muito intensa, é uma narrativa em primeira pessoa de uma história que é coletiva. Toda vez que eu assisto ao filme eu lembro de várias pessoas. Em uma fala de um minuto tem 10 anos de experiência, de militância, de reuniões e trocas.
Guaicuy: O filme retrata as histórias de três mulheres de origens diversas, como você entende o papel da mulher no ativismo?
Carolina: Os diretores falam que foi uma escolha política, uma decisão estratégica e eu vejo que, nesse momento, esse debate está em ebulição. O de olhar para esse papel das mulheres. É importante aprofundar essas reflexões sobre o ecofeminismo. As mulheres sentem os impactos de forma diferenciada, o extrativismo é a máxima expressão do patriarcado no mundo. As mulheres sentem no seu corpo as violações da terra, parece um soco, um aperto no coração, uma falta de ar. Tem muitos feminismos e eu acho bastante interessante a conexão da luta pela defesa do corpo individual e também do corpo da terra.
Nas reuniões, por mais que tenham mais mulheres presentes, quando fala um homem, vai ser muito mais respeitado, vai ser muito mais ouvido. [As mulheres] fazem um esforço dobrado e um protagonismo invisibilizado. Geralmente são as mulheres que tocam os trabalhos, mas o representante das associações é o homem e é ele que vai para o microfone falar. Essa relação machista é muito forte nesse pacto entre homens de diferentes espaços.
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