Instituto Guaicuy

O que o distrito de Antônio Pereira tem a ver com o rompimento da Barragem de Fundão?

10 de maio, 2024, por Ellen Joyce Marques

Duplamente atingida, a comunidade de Antônio Pereira (Ouro Preto/MG) luta por reparação pelos danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão e pelo risco de rompimento e obras de descomissionamento da Barragem Doutor.

Foto: Luiz Santana / ALMG

Na última segunda-feira, dia 6 de maio, a  Comissão Interestadual Parlamentar de Estudos para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia do Rio Doce (Cipe Rio Doce), realizou um debate público na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para discutir a situação do processo de reparação dos danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana. Carla Dayane Moreira Dias, moradora de Antônio Pereira esteve presente no evento e falou sobre como o desastre-crime de 2015 afetou, e afeta, a sua comunidade. “A gente quer que Antônio Pereira seja reconhecido como local atingido pela Barragem de Fundão. Na época que a lama rompeu, duas pessoas de Antônio Pereira morreram, uma delas foi achada dias depois. O índice de desemprego que aconteceu foi enorme, as pessoas chegaram, realmente, a passar fome”.

Comunidade atingida pelo risco de rompimento e obras de descomissionamento da Barragem Doutor, a população de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto/MG, sofre uma sobreposição de danos que tem entre os responsáveis a mineradora Vale. Reincidente, a Vale, junto à BHP e à Samarco, alegou estabilidade na Barragem de Fundão, que rompeu em 2015. A mineradora também afirmou a estabilidade da Barragem da Mina Córrego do Feijão, que rompeu em 2019, em Brumadinho. Em ambos os casos, a sirene não soou, mas a devastação se alastrou Rio Doce e Rio Paraopeba a fora e os danos, sistematicamente continuados, se intensificam com a falta de reparação justa e integral das pessoas atingidas e dos ecossistemas destruídos. 

Comunidades vizinhas, dores compartilhadas

Antônio Pereira, vizinho da cidade de Mariana, fica a menos de 40 km de Bento Rodrigues, mas não é só a proximidade que o distrito tem em comum com as localidades devastadas pela lama de rejeito tóxico da mineração. A população de Antônio Pereira ainda chora a morte de duas pessoas da comunidade em decorrência do rompimento da Barragem de Fundão. Mateus Márcio Fernades, de 29 anos, foi arrastado pelo mar de lama e teve seu corpo encontrado três semanas após o rompimento. Cláudio Fiuza, de 40 anos, foi socorrido pelos amigos do trabalho após um mal súbito enquanto corria para salvar a própria vida no dia do rompimento, mas não resistiu.

Foto: Lucas Bois / Rede de Jornalistas Internacionais

Douglas Garcia (DuRio), morador de Antônio Pereira que trabalhava na construção de um dreno, parte da obra que pretendia altear em mais 25 metros a Barragem de Fundão, conta como foi o momento de desespero em que correu para não morrer enquanto amigos perdiam a vida diante de seus olhos:

“Claudio tava trabalhando comigo, eu senti o chão tremendo… olhei dez metros a frente e a barragem estava estourando, eu comecei a gritar ‘corre corre que a barragem tá estourando’ eu pedi à Nossa Senhora da Lapa ‘me ajuda a correr que eu não tô aguentando mais não’ foi quando abriu uma cratera ao meu lado e um tubo puxando um tratorista que tava passando ao meu lado, a lama engoliu ele perto de mim. O Cláudio passou mal na metade do caminho, nós conseguimos resgatar ele e levar até lá em cima. Chegando lá ele caiu e a gente começou a fazer massagem cardíaca. O Cláudio estava no chão, nós então conseguimos pedir socorro da ambulância, que levou ele, mas eu acho que naquele momento que ele caiu, ele já estava morto”.

DuRio desenvolveu traumas psicológicos e problemas respiratórios graves em decorrência do crime-desastre. Além de ver a morte de perto, ele inalou o material suspenso no ar pelo rompimento da barragem. Apesar de ter em mãos um dossiê elaborado pela Cáritas MG com a sistematização de todos os danos sofridos, ele ainda não foi reconhecido como pessoa atingida e não teve a justa reparação por esses danos.

Assim como DuRio, toda a sua comunidade, Antônio Pereira, luta por reconhecimento como atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão. Além do luto, a população do distrito passou por um longo e sombrio período de recessão causada pelas consequências do rompimento da barragem. Desemprego, fome e medo passaram a fazer parte do cotidiano da comunidade desde 2015. 

Garimpo tradicional: salvaguarda de Antônio Pereira

Os danos socioeconômicos provocados pelo rompimento da Barragem de Fundão ao distrito de Antônio Pereira teve seu ápice no ano de 2017. De acordo com Carla Dayane, nesse período muitos moradores do distrito e de outras comunidades tiveram que ajudar com alimentos, agasalhos e outras coisas para garantir a sobrevivência do povo. Segundo ela, o que salvou foi a comunidade tradicional de garimpeiras e garimpeiros do distrito. “Os garimpeiros tradicionais foram em massa para os rios garimpar ouro e isso moveu um pouco o comércio dentro da Comunidade”, relata Carla Dayane.

Seu Wilson Nunes, morador de Antônio Pereira conta como o garimpo tradicional manteve o distrito nesse período. “Não fossem os garimpeiros tradicionais, o povo de Antônio Pereira tinha passado mais fome e todo comércio de Antônio Pereira teria sido fechado porque a Vale, a Samarco e a BHP, logo depois do rompimento, juntou as trouxas e foi embora” e completa, “foram os mais de trezentos garimpeiros tradicionais que seguraram a peteca, que manteve os comércio funcionando”. A criminalização que a Vale provoca sobre a atividade tradicional gera revolta. “Mesmo assim, agora eles ficam chamando a polícia pra prender os garimpeiros, prendendo pá e bateia dos garimpeiros tradicionais, que sempre viveram dessa atividade” indigna-se o Seu Wilson. 

Foto: Hariane Alves / Instituto Guaicuy

Danos ao futuro: estudantes sofrem duplamente

Pedagoga, Carla Dayane destaca os danos que estudantes do distrito sofreram em decorrência da mineração. “A gente perdeu um colégio que dava bolsas para moradores de Antônio Pereira, uma escola boa, que tinha altos índices de boas notas dessas crianças, inclusive aprovadas em universidades federais. A gente perdeu tudo isso dentro da comunidade”.

Foto: Ellen Barros / Instituto Guaicuy

Esse é mais um dos exemplos da sobreposição de danos causada pelo rompimento da Barragem de Fundão e pelo descomissionamento da Barragem Doutor. O colégio lembrado por Carla Dayane ficava na Vila Residencial Antônio Pereira e oferecia bolsas de estudos para os jovens do Distrito de Antônio Pereira. Ele teve que fechar as portas após o rompimento da Barragem de Fundão porque o convênio entre a Samarco e o Colégio Arquidiocesano não foi renovado logo após o desastre-crime. 

Em 2017, porém, a mineradora renovou a parceria, mas a crise social, cultural e econômica causada pelo rompimento da Barragem de Fundão já estava instaurada, o que reduziu o número de alunos e, consequentemente, o volume de concessão de bolsas. Tudo isso se agravou em 2019, pois o medo da barragem acima do distrito se tornou ainda mais real. Pouco mais de um ano depois do rompimento da Barragem da Vale em Brumadinho, no dia 1º de abril de 2020, houve a elevação do risco de rompimento da Barragem Doutor em Antônio Pereira. Com isso, famílias de alunos foram removidas compulsoriamente da comunidade, por estarem na zona de auto salvamento (ZAS). A escola buscou apoio das mineradoras para sobreviver à crise causada por elas mesmas, mas acabou tendo suas portas fechadas pela segunda vez.

Crimes continuados

O rompimento da Barragem de Fundão, no dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da Barragem na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019 são desastres-crimes que seguem impunes. Os dois fatos não são isolados e foram precursores de outras atividades criminosas praticadas pela mineração predatória, como o terrorismo de barragens provocado pelo fenômeno que leva o nome de “lama invisível”. 

As remoções forçadas de famílias e comunidades inteiras de seus territórios de origem em função de rompimentos e risco de rompimentos de barragens da mineração colocam Antônio Pereira em situação similar a de locais como Barão de Cocais, Itatiaiuçu e Macacos, por exemplo. São deslocamentos compulsórios que apavoram, destroem modos de vida e geram caos em comunidades inteiras. 

Foto: Léo Souza / Instituto Guaicuy

Hoje, em Minas Gerais, existem 38 “bombas-relógio” sob as cabeças de milhares de famílias. Além de Mariana e Brumadinho, os municípios de Araxá, Congonhas, Fortaleza de Minas, Igarapé, Itabira, Itabirito, Itapecerica, Nazareno, Nova Lima, Ouro Preto, Poços de Caldas, Rio Acima e Sarzedo também tiveram barragens interditadas por risco de rompimento e que ainda não foram descaracterizadas e descomissionadas, representando risco real de morte para a população e destruição ao meio ambiente de formas irreversíveis.

A reparação é possível, mas depende da responsabilização das mineradoras

Durante o debate público realizado na ALMG foi apresentada uma série de alternativas e possíveis soluções para a reparação socioambiental da Bacia do Rio Doce. No evento foi mencionado o dinheiro gasto até o momento com um processo de reparação que não alcançou quem mais precisa: as pessoas atingidas. São anunciados pela Vale e pela Fundação Renova o montante de R$37 bilhões. Na mesa de repactuação dos acordos para a reparação, as mineradoras propuseram mais  R$72 bilhões. A proposta de acordo, porém, reduziria as responsabilidades das mineradoras, por isso, foi rejeitada pela União e pelo do estado do Espírito Santo. O Governo de Minas Gerais até o momento não se pronunciou.

As condições postas pelas mineradoras para a repactuação não trazem avanços em relação ao que havia sido discutido e acordado até então. Com ou sem repactuação, as comunidades atingidas seguem na luta por reconhecimento e reparação justa!

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