Elas são agricultoras, pescadoras, professoras, donas de casa, comerciantes, cabeleireiras, empresárias, faxineiras e tantas outras profissões. Mas além da dupla jornada de trabalho de quem tem que ganhar o pão e dar conta das tarefas de cuidado, elas também se dedicam à luta pelos direitos de toda a família e de suas comunidades, violados pela mineração, se dividindo entre as tarefas diárias e as demandas do processo de reparação dos danos causados por empresas como a Vale. Para somar forças à luta das mulheres atingidas pela mineração, aconteceu no último sábado (14/9), o II Encontro das Mulheres em Defesa da Vida, organizado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em Belo Horizonte.
Estiveram presentes no evento 250 mulheres atignidas por barragens em Minas Gerais. A maioria delas era da bacia do Rio Paraopeba e da região da Represa de Três Marias. Mas também estavam presentes representantes moradoras da Bacia do Rio Doce, de Itatiauçu e da Bacia do Jequitinhonha, além de integrantes de entidades parceiras e representantes das Instituições de Justiça (IJS). “A primeira e principal pauta das mulheres é o direito de ser ouvida e de participar de todos os processos que decidam sobre nossas vidas”, afirmou Soniamara Maranho, da coordenação do MAB, no início do dia.
Os temas mais abordados durante o encontro foram as questões de saúde física e mental vivenciadas pelas mulheres, além de relatos de tantas outras violências praticadas pela Vale após o rompimento da barragem em Brumadinho. Durante as falas, elas reivindicaram que as especificidades dos danos sofridos, como, por exemplo, a perda de renda e o adoecimento mental, sejam reconhecidos do processo de reparação como garante a Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB). “A saúde não espera”, afirmou Maria Santana, moradora de São Joaquim de Bicas, após relatar sobre todas as pessoas próximas que perdeu, por complicações de saúde, após o rompimento da barragem.
Também foi citada pelas presentes a urgência na criação da Política Estadual e Atenção à Saúde da População Atingida, com a consolidação de um protocolo de atendimento especializado de cuidado com as consequências da mineração na saúde das pessoas. “Temos pesquisas que mostram que as pessoas que precisam viver esse processo de reparação perdem tempo de vida. É urgente que se cuide das questões ambientais para que nossos modos de vida possam voltar. E que esse tempo tirado de nós seja compensado, de alguma maneira, pois estamos morrendo aos poucos”, disse Eliana Marques, de Cachoeira do Choro, comunidade de Curvelo.
Além dela, estiveram presentes no evento cerca de outras dez mulheres das Regiões 4 (Curvelo e Pompéu) e 5 (Represa de Três Marias), assessoradas pelo Instituto Guaicuy. “Eu vim para ouvir minhas companheiras e para somar minha força na delas, porque estamos lutando pelos mesmos direitos, por mais que as formas como as vidas foram afetadas pela mineração, em todo o estado, tenha sido tão diversa”, explica Liderjane Kaxixó, da comunidade indígena Kaxixó, localizada em Martinho Campos.
Outro tema bastante citado pelas mulheres foi a necessidade do fornecimento de água com qualidade e quantidade adequada para o consumo das famílias prejudicadas pelo desastre-crime.
Nos diferentes relatos durante o encontro, as mulheres falaram também sobre os desafios pessoais encontrados na luta pela reparação, um processo desgastante e doloroso. “Muitas de nós nos divorciamos nesse tempo, adoecemos, cansamos, porque é tanta coisa pra cuidar e aguentar, que a gente não consegue sustentar tudo. E por isso estamos aqui, porque ficar perto de quem também está no mesmo barco, nos dá força para continuar. Estamos aqui também pelos nossos filhos e netos, porque existe futuro”, ressaltou Eliana.
Gleicilene da Conceição, de Felixlândia, aproveitou sua fala para criticar o comunicado das IJs feito na última quinta-feira (11). Nele, foi informada a prorrogação do tempo para aprovar o plano definitivo de execução do Anexo 1.1 do Acordo de Reparação. O Anexo destina R$3 bilhões para projetos de demandas das comunidades prejudicadas e para linhas de crédito e microcrédito. São projetos para fomentar a geração de trabalho e renda, o acesso à cultura, esporte e lazer, à qualidade de vida e à saúde, para reparar uma série de problemas vivenciados pelas pessoas atingidas após o rompimento da barragem da Vale. O Anexo 1.1 é o único que cita, no texto do Acordo, a necessidade de participação das pessoas atingidas pelo desastre-crime em suas decisões e em todas as suas etapas.
A prorrogação se deve, em parte, a um pedido da Fundação Getúlio Vargas (FGV), segunda colocada no edital que definiu quem seria a Entidade Gestora dessa parte do Acordo. Como participante do processo, ela tem direito de questionar e pedir esclarecimentos às IJs.
“É muito importante que a mulher tenha voz. Ninguém queria que tivesse acontecido esse crime, mas temos que fazer a diferença nos nossos territórios. Todos ficaram vulnerabilizados e queremos nossas vidas de volta. Por que a FGV está questionando? Precisamos de transparência sobre o que está sendo questionado e precisamos de um compromisso das IJs para impedir que todo trabalho feito até aqui para o Anexo 1.1 acontecer não seja em vão”, afirmou Gleicilene.
Após ouvirem todos os relatos feitos pelas mulheres presentes, a promotora de justiça Shirlei Machado, da Coordenadoria Regional de Inclusão e Mobilização Sociais (Cimos) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), também teve seu momento de fala. Na oportunidade, a promotora agradeceu a partilha sensível das mulheres atingidas, e reforçou o quanto essa escuta é importante para que as instituições possam buscar caminhos justos para as situações vividas por elas.
“Eu sei que não é fácil recontar essas histórias, mas também sei que quando são recontadas, isso cria um laço muito forte entre todos mundo que está aqui”, disse. Ela aproveitou para lembrar as pessoas presentes sobre os danos individuais de quem foi prejudicado pela Vale, que não estão contemplados no Acordo de Reparação e que se trata de um importante ponto para garantir a dignidade dessas comunidades, e destacou que as IJs tem responsabilidade na gestão financeira do Acordo Judicial.
Já a promotora Vanessa Campolina, do Ministério Público de Minas Gerais, defendeu o Sistema Único de Saúde, mas reconheceu a necessidade de um protocolo de atendimento no caso de contaminação de metais pesados, situação cada vez mais comum nas comunidades atingidas. A promotora também destacou que as IJs têm responsabilidade na gestão financeira do Acordo Judicial. “Acho que esse espaço aqui é muito rico também para se pensar um documento de reivindicação das mulheres em relação a Política Nacional de Atendimento à Saúde da Mulher. De que forma essa política deve conversar com a realidade das mulheres atingidas pela mineração?”, perguntou a promotora. Para finalizar, ela exaltou a presença de todas que estavam no evento, agradecendo pelo tempo dedicado a um processo tão duro.
De acordo com o MAB, um documento com todos os relatos e reivindicações foi formalizado e enviado para as representantes das Instituições de Justiça presentes. Também foi definido que haverá o terceiro Encontro das Mulheres em Defesa da Vida, no qual os grupos irão se reunir para pensar as propostas de ações, com foco na saúde e defesa das mulheres atingidas, para serem executadas pelo poder público durante todo o processo de reparação dos danos causados pela mineração. A data deste novo encontro ainda não foi definida.
*Crédito da imagem: Ana Patrícia Souza
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