O Instituto Guaicuy entrevistou Eunice Godinho, moradora da comunidade de Cachoeira do Choro (Curvelo) e integrante do coletivo Guerreir@s, movimento auto-organizado de pessoas atingidas pelo desastre-crime da Vale. Eunice falou sobre a ação criada pelo coletivo, em que pessoas que já recebem o Programa de Transferência de Renda (PTR) doam parte do dinheiro para comprar alimentos para as pessoas que estão passando por dificuldades e que ainda não recebem o pagamento.
O PTR é um valor pago mensalmente às pessoas que sofreram prejuízos pelo rompimento da barragem da Vale, mas a morosidade e dificuldade para acessar o programa tem trazido, além de dor de cabeça, desânimo e, às vezes, fome para quem precisa do recurso.
Leia na íntegra a entrevista com Eunice e saiba mais sobre essa ação.
Eunice: Olha, tudo começou numa reunião que nós, do grupo Guerreir@s, fizemos após o nosso retorno de Brasília [para uma audiência pública no Congresso Nacional]. Estavam presentes três mulheres das Guerreir@s, junto com a Assessoria Técnica do Guaicuy. Nós fomos fazer essa devolutiva pro grupo [sobre a ida para Brasília] e uma pessoa escreveu no chat que tinha ido no Encontro de Comissões da Região 4 e contou que ela levou uma vasilha pra ver se conseguia levar um pouquinho de comida para casa.
E aquilo me chamou atenção, e de outra companheira também, a Tatiane Menezes. Na hora em que nós acabamos a devolutiva, eu e essa colega começamos a conversar pelo WhatsApp, e foi quando eu perguntei “o que é aquilo?”.
Foi dali que surgiu a ideia, para atender essa pessoa específica. E a partir disso, a gente percebeu que tem outras pessoas nessa situação. Então, a gente falou: “olha, a gente não tem muito, mas o pouco que a gente tem, a gente vai fazer um esforço de estar dando pelo menos esse pouco, o mínimo, o básico”
Eunice: A gente não tem dinheiro em caixa, a gente não tem fundo nenhum. Então, a gente partiu de qual ideia? Cada pessoa que esteja recebendo o PTR e possa doar algum valor pra gente comprar mantimento, a gente faria assim. E aquele que pudesse doar o mantimento, faria a doação do mantimento. E não só alimento. A gente está arrecadando roupas, brinquedos, tem tudo isso.
Nós não estamos expondo as pessoas. Inclusive, essa pessoa que recebeu a cesta, nós temos uma foto porque ela é que fez questão de fazer a foto, entendeu? Mas nós decidimos que, em momento nenhum, vamos expor as pessoas. Essa não é a intenção. Ela quis tirar foto recebendo a cesta porque ficou muito agradecida.
Aí a gente está fazendo o seguinte: nós combinamos de manter um controle, registrar tudo, pra quem [vai a doação]… quanto que está entrando, né? A doação de cada pessoa, aquilo que é comprado, é anexado às notinhas. Montamos a cesta e, na hora de entregar pra pessoa, a gente anota pelo menos a data e o nome da pessoa que recebeu, apenas isso.
A gente conversa com um aqui, com o outro ali e vai puxando, né? Essa semana mesmo, eu conversei com outro atingido e falei com ele: “olha, a gente está fazendo essa mobilização…”. Não pedi nada a ele, a gente só estava conversando. Na hora ele perguntou: “qual é o Pix? Me manda aí que eu vou ajudar. Não posso dar muito, mas eu vou dar uma força”. E mandou, entendeu? Então, assim, é trabalho de formiguinha mesmo.
Eunice: Fortalece, porque nós sabemos que somos todos iguais. Principalmente nesse contexto. Nós somos todos iguais, estamos na mesma situação, né? Mas, infelizmente, a gente percebe que tem uns que estão numa situação um pouco mais difícil.
E fortalece no sentido da gente entender que, mesmo lutando por uma reparação, mesmo com a ausência desta reparação, nós podemos enquanto pessoas humanas, nós ainda podemos, mesmo na dor, consolar a dor do outro. Então, eu acho que isso é uma forma de engajamento, de fortalecimento. Não parar em mim, mas olhar além de mim, sabe? É isso e é muito importante.
Mesmo porque, nós estamos nessa luta há 4 anos e 3 meses. Se a gente não puder dizer, lá na frente, que algo de bom aconteceu entre nós e por nós, não valeu a pena ter lutado tanto. Não faz sentido tanta luta para não se tocar em algo concreto.
“A luta tem sido muito desumana, porque a gente tem sido negligenciado o tempo inteiro. As pessoas terem que comprovar que moram ali na mesma casa, com o esposo e com os filhos, e ainda assim não ser suficiente.“
Eunice Godinho, moradora da comunidade de Cachoeira do Choro (Curvelo) e integrante do coletivo Guerreir@s
Eunice: A luta tem sido muito desumana, porque a gente tem sido negligenciado o tempo inteiro. As pessoas terem que comprovar que moram ali na mesma casa, com o esposo e com os filhos, e ainda assim não ser suficiente. Lutar para ter o que comer na mesa…
Mesmo porque, como eu te falei anteriormente, esse dinheiro que está sendo doado é do PTR. Está sendo daqueles que já foram incluídos no programa, que estão se sensibilizando e tirando um pouquinho. Um pouquinho do pouquinho. Essa luta pelo PTR é muito desumana, muito desumana mesmo. Porque é um direito nosso, já foi dado como um direito nosso.
A gente entende que precisa haver critérios para que não haja corrupção. Mas a gente também entende que é muito urgente que esse dinheiro chegue na casa das pessoas. Porque a gente está falando não é de dinheiro, a gente tá falando é de um prato de comida, a gente tá falando é de um pão para a criança. Não é apenas o dinheiro, nós estamos falando é de comida, é de água para beber, sabe? Então isso é muito desumano.
Eunice: Nós esperamos, num primeiro momento, tentar de alguma forma dar alento a quem não está tendo o que comer e dizer: “olha, nós estamos aqui. O que nós pudermos fazer, a gente vai tentar fazer. Então aguenta firme, porque a gente vai lutar pelo seu direito também. Você não está sozinho”.
E é continuar. A gente espera que esse projeto continue enquanto as pessoas não forem reconhecidas [para o PTR]. É um projeto ambicioso, porque nós não temos fundos, nós não somos pessoas abastadas. Mas, pelo nosso esforço e empenho, cada um fazendo um pouquinho, eu acho que dá para acompanhar até que as pessoas sejam reconhecidas no seu direito, porque nós não abrimos mão disso.
“Bom, o desânimo, todo dia ele vem, né? Diante das negativas, das arbitrariedades, da injustiça. Mas, se a gente pensar que, enquanto há vida há esperança, e que a gente precisa respirar todos os dias, a gente tem que fazer disso uma força para esperançar a vitória. Porque o desânimo, pelo desânimo, você não faz nada.”
Eunice Godinho, moradora da comunidade de Cachoeira do Choro (Curvelo) e integrante do coletivo Guerreir@s
Eunice: Bom, o desânimo, todo dia ele vem, né? Diante das negativas, das arbitrariedades, da injustiça. Mas, se a gente pensar que, enquanto há vida há esperança, e que a gente precisa respirar todos os dias, a gente tem que fazer disso uma força para esperançar a vitória. Porque o desânimo, pelo desânimo, você não faz nada.
Então, eu chamo as pessoas para persistir na luta pelo seu direito. Levanta o companheiro que está do lado, desanimado. Motiva ele. Pode até demorar a chegar, mas um dia vai chegar. Eu costumo dizer, e eu acredito muito nisso, que tudo na vida passa. E um dia essa luta nossa vai passar, mas enquanto ela tá aí, a gente precisa lutar.
É um segurando a mão do outro, é encorajando, é ter um olhar atento para a necessidade do outro. Às vezes, não é uma necessidade só de alimento. Às vezes, é a necessidade de uma palavra de ânimo e de esperança e é isso que nos motiva até hoje. Então, que as pessoas não percam isso de vista. A confiança de que Deus está conosco, ele é por nós. E que um dia nós vamos pôr a mão nessa vitória. É isso.
De forma alguma o grupo Guerreir@s quer cartaz. Nunca foi essa a nossa intenção. Queremos que todos aqueles que já adentraram no PTR e que podem doar alguma coisa, seja muito ou pouco, que façam sua parte e somem-se a nós, para que a gente possa fazer pelo menos o básico. Para que o alimento possa chegar na mesa de quem não tem hoje. E é isso! Gratidão, gratidão, gratidão. Apenas isso!
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