Foi em 2016 que Quésia Martins se mudou para a comunidade Santa Cecília, em uma região conhecida como Diamantes, na zona rural de Pompéu, para viver da pesca com a família. Natural de Sabará, descobriu a região por indicação da irmã: “não tem como a gente vir aqui e não se apaixonar”. Nessa conversa, ela conta sobre como, após o rompimento, mudou a relação que ela tinha com a pesca e com as águas da represa de Três Marias, do Paraopeba, e do São Francisco.
Guaicuy: Como é a sua relação com as águas da represa e do Paraopeba?
Quésia: A nossa relação com a água sempre foi muito boa, né? Ela é nossa vida, dela a gente tira nosso sustento, o nosso lazer. Depois do desastre-crime da Vale, começou o nosso inferno em vida. Porque, desde então, vêm aparecendo doenças, os peixes sumiram, estão muito raros os peixes, a gente já não consegue mais tirar o nosso sustento da água.
Guaicuy: Como era a sua rotina de pesca antes do rompimento?
Quésia: Em 2016, por aí, que foi quando eu vim pra cá. Conheci esse lugar maravilhoso, a gente pescava todo dia. Saía de casa por volta de seis da manhã, clareava o dia e a gente estava saindo. Ficava o dia inteiro e a gente pescava aproximadamente 30, 40 quilos de peixe por dia. Depois do rompimento, a gente já vem um pouco mais tarde, porque não adianta vir cedo. Vem por volta de oito, nove da manhã. E costuma ficar semanas sem a gente pegar um peixe. Nenhum peixe.
O peixe não corre mais. A gente não sabe muito bem o porquê, mas a escassez de peixe está sendo muito grande. Então, já não adianta mais a gente vir muito cedo, a gente vem às oito. Antes, a gente tinha um ponto fixo para a pesca. Só que, com essa questão do peixe sumir, a gente também foi migrando, procurando lugares em que o peixe esteja correndo um pouquinho mais.
Guaicuy: Como essas mudanças atrapalham a rotina?
Quésia: Olha, atrapalha tudo. Como não está pegando peixe, como a gente depende do pescado para a nossa sobrevivência, a gente tem que migrar, carregar, tirar tudo. Não são poucas coisas, e é peso, né?
De barco até que dá, porém tem gasolina. Não tá barata, mas a gente tem que ir.
Guaicuy: Quando você começou a pescar?
Quésia: Ah, eu comecei a pescar quando eu era pequena. Meu pai levava a gente, as coisas eram um pouquinho difíceis, não tinha muita carne, então a opção pra gente era o peixe. E meu pai saía e levava os filhos todos para pescar com ele. Depois eu fui tomando gosto.
E em 2016 eu conheci esse paraíso aqui. Conheci aqui, me apaixonei, larguei o serviço e mudei de vez pra cá. E me tornei pescadora profissional.
Guaicuy: Como era sua relação com o Rio e com a represa para além da pesca?
Quésia: Antes de mudar para cá, eu vinha por lazer mesmo. Pescava um pouco, ia embora. Eu, meus filhos, minhas irmãs… ficava todo mundo aqui, só nadando e pescando, era muito gostoso. A gente se divertiu muito, tem muitas fotos e vídeos, a represa cheia de peixes. Você via a natureza, aquela exuberância, aquela abundância de peixe. Hoje já não se vê isso mais. A gente ainda usa a água para lazer, mas não como usava antes.
Guaicuy: Existe certo temor com a água?
Quésia: Tem muito temor… porque a gente nada, mas costuma ficar com coceira no outro dia, sabe? Começam a surgir edemas na pele da gente, micose. Meus meninos já não nadam mais. Todo mundo começou a ter problema de visão e a gente acredita ser por causa da água.
Guaicuy: Por que você se dedica à luta pela reparação?
Quésia: Eu acho muito importante porque, primeiro, eu acho que ninguém vai conseguir parar a Vale. Infelizmente, existe a minério-dependência. Mas, que ela pague, que ela arque com os prejuízos que ela vem causando. Porque ela vem tornando nossa vida um inferno. Ninguém tá conseguindo enxergar uma luz no fim do túnel.
Eles estão causando danos a todos os brasileiros, a todo mundo. Não foram só as 272 vidas lá em Brumadinho, cada vez que eles matam um sonho, eles matam uma pessoa. E eles vêm matando sonhos, porque a gente não tem mais perspectiva de vida. Meus filhos moravam aqui comigo, eles foram embora pra cidade. A minha neta podia estar crescendo aqui nesse paraíso.
Não tem como mais, não tem uma fonte de renda, não pode mais comer do pescado, não pode mais vender, então não tem mais perspectiva de vida aqui. Aqui é um lugar lindo, maravilhoso, mas você olha assim e enxerga a morte. Infelizmente.
E sabe o pior disso? É saber que tudo isso tem uma culpada e que ela não está sendo punida como deveria. Ela está matando as pessoas. Ela está cometendo um dos maiores crimes. Ela está matando ideais, ela está matando sonhos, e ninguém está vendo isso, ninguém está punindo. Ninguém pune ela, ninguém pára. Acha que dinheiro paga tudo. Não é dinheiro que a gente quer, a gente quer isso aqui ó. Beleza, sabe? A natureza, o meio ambiente. É isso que a gente quer.
Matéria originalmente publicada na 9ª edição do Piracema. Clique aqui para ler o jornal.
Assista também ao documentário Diamantes, que traz trechos da entrevista com Quésia:
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