Instituto Guaicuy

“Eu me tornava parte do caiaque e remar fazia parte de algo muito maior”

20 de setembro, 2023, por Camila Bastos

Vinte anos depois, confira o relato de Ronald Guerra, vice – presidente do Guaicuy, sobre a Expedição que marcou o Projeto Manuelzão

Em setembro de 2003, um trio de canoístas saiu da Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, em direção à Barra do Guaicuí, distrito de Várzea da Palma, num percurso de 30 dias que atravessou da nascente à foz do Rio das Velhas. Eles foram seguidos por vários voluntários, todos com o objetivo de trazer consciência e jogar luz sobre a revitalização de um dos cursos d’água mais importantes de Minas Gerais. 

Batizada de Expedição “Manuelzão Desce o Rio das Velhas”, a viagem marcou o início da meta 2010, que mirava a recuperação daquele rio e consagrou o Projeto Manuelzão como um dos projetos socioambientais mais relevantes de Minas Gerais naquela década. 

Até chegar à foz do Velhas, a Expedição fez paradas estratégicas para atividades de mobilização e educação ambiental. Às margens do rio, uma equipe multidisciplinar seguia por terra para viabilizar o desafio do trio de canoeiros, Paulo Roberto Furtado de Azevedo Varejão, professor de História da Educação da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Rafael Guimarães Bernardes, transportador autônomo e ambientalista e o produtor rural e ambientalista, Ronald de Carvalho Guerra, hoje vice-presidente do Instituto Guaicuy, com quem conversamos sobre a experiência. Confira!

Como foi feito o convite para participar da Expedição?

Ronald: Eu já vinha trabalhando com o Apolo [idealizador do Projeto Manuelzão], fazendo todo o projeto de mobilização no Alto Rio das Velhas, fui convidado para trabalhar no Projeto Manuelzão, na equipe de Mobilização. Um dia, o Apolo me chamou para desenvolver um projeto. Uns anos antes, ele já tinha me chamado por causa de um grupo que apresentou um projeto e a expedição e eu fui na reunião, mas não gostei muito porque já era uma proposta pronta e eu achava muito importante que o Manuelzão construísse esse processo.

Passou um tempo, ele pediu para eu entrar em contato com o Rafael, que tinha feito uma proposta de projeto e tinha um histórico de remo e com o Beto, que já tinha feito um trecho do São Francisco com seus alunos. A partir daí a gente foi alinhando, construindo o planejamento. O Rafael foi muito estratégico, até porque eu não tinha remado como atividade esportiva e fui fazendo o treinamento, e o Beto tinha uma ligação muito forte com o Richard Burton [famoso antropólogo e explorador]. 

A gente foi se aproximando e fazendo o planejamento, junto com os coordenadores do Manuelzão. Eu participei, principalmente, do roteiro da viagem e da coordenação e mobilização da equipe de terra e da equipe de água.

Pode contar um pouco sobre como foram os preparativos?

Ronald: A Expedição foi planejada de algumas maneiras. Primeiro com a participação do Procópio [presidente do Instituto Guaicuy] e da Sílvia Magalhães, geógrafa da equipe do Manuelzão. A gente passou 30 dias fazendo um planejamento georreferenciado, decidindo trecho a trecho. Fizemos uma imersão e, em paralelo, com o Rafael, a gente fazia a preparação física três vezes por semana.  E passamos a fazer alguns trechos, de forma georreferenciada. Naquele tempo a gente tinha poucos recursos, mas foi um trabalho muito meticuloso, que nos auxiliou muito. E aí, começamos a fazer alguns trechos, para ver se batia tudo, como o tempo de remagem.

Depois dessa fase, teve outra fase muito importante, de fazer a expedição georreferenciada e conferir os trechos com treinamento, a gente fez três dias de helicóptero de todo o percurso e fazendo o levantamento aéreo, naquela época não tinha drone. Depois, fizemos uma semana de todo o trajeto por terra, organizando ponto a ponto todo o processo. Eu posso falar que conheço o Rio das Velhas por terra, por ar e por água. 

 

Como foram decididos os pontos de parada? O Manuelzão tinha apoiadores nessas cidades para receber vocês?

Ronald: O Manuelzão já tinha uma rede de pessoas em toda a Bacia pelo processo de mobilização e articulação que era feito. Teve todo o trabalho de também levar o planejamento para essa rede de pessoas, com uma equipe própria responsável pela mobilização da expedição. Essa equipe fez um trabalho que antecedeu e também durante.

 

Como era o contato com o restante da equipe, que seguia pelas margens do Velhas?

Ronald: Tínhamos várias equipes: a mobilização, os motoristas que nos davam suporte, navegadores que passaram a nos acompanhar, entre outros, e o tempo todo a gente fazia contato. Em cada localidade que a gente passava, já tinha preparado de antemão um grande encontro com os povos do território. Eu lembro que em Raposos a gente parou na hora do almoço e o prefeito decretou feriado municipal para que toda a cidade pudesse estar na beira do Rio, esperando a gente chegar.

Fora isso, a gente tinha a equipe de Comunicação e também algumas instituições estratégicas, o Instituto Mineiro de Agropecuária mandou representante, o Instituto Estadual de Floresta também. A polícia ambiental acompanhou nos trechos que eram de jurisdição, o próprio governo do estado também. E para o contato não tinha estrutura de celular como é hoje, era tudo pelo sistema de rádio, na medida em que tinham os acessos para isso. Muitas vezes, no trecho, os próprios motoristas desciam por terra. 

Qual a sua lembrança mais marcante daqueles dias?

Ronald: Existe, pra mim, algo que está ligado à minha própria formação, que era a disposição para esse grande desafio físico e também uma postura de fazer isso com uma disciplina muito grande. Na minha base de formação, eu fiz yoga por muitos anos, fui instrutor, então tenho um treinamento muito grande relacionado à capacidade de concentração e a compreensão de todo o processo de respiração. Muito marcante para mim, então, era a própria interação, inteiro, comigo. Tudo o que eu fazia para manter todo esse processo de concentração e disciplina.

O tempo todo, apesar de estar interagindo com todo mundo, quando eu entrava no caiaque, era um processo de meditação. Eu me tornava parte do caiaque e remar fazia parte de algo muito maior, que era minha relação com a água, com o desafio e com toda a vida que circunda essa água. Para mim, o Rio das Velhas era um ser vivo, que eu aprendi a escutar.

 

O que a Expedição significou para você?

Ronald: Para mim o mais marcante foi compreender essa dimensão e interação com o rio, em todas as suas formas. Tanto de beleza natural, como nas suas formas mais degradantes, como no trecho de maior poluição, refletindo a condição do território e a forma com que a gente trata o próprio rio. 

O Rio é um ser vivo, que o tempo todo me contou as suas histórias, me mostrou seu sofrimento e as suas aflições. É um ser que eu respeito muito. Nós somos água, somos rio e a gente se relaciona dessa maneira. Para mim, foi uma revitalização interior como um movimento para a revitalização das águas de toda a Bacia. 

 

E o que você acha que significou para a sociedade?

Ronald: A gente mostrou que as pessoas estavam de costas para o rio, eles tratavam o rio como um local que não era enxergado, até mesmo pelas casas voltadas para o leito do rio, que eram focadas na dinâmica urbana. E essas pessoas jogavam ali os seus excrementos, poluíam o rio sem percepção mesmo do seu comportamento. O que a gente fez foi inverter essa ordem, mostrar que o mais importante é olhar para os rios, perceber toda essa dinâmica.

Para a sociedade, a gente fez um movimento de mobilização, articulação e construção institucional e daí surgiu a Meta 2010 [campanha de revitalização do Rio das Velhas], numa discussão no início da Expedição. As pessoas paravam a gente e falavam que a gente ia salvar o rio, mas não, a gente estava lá para mostrar como o rio estava sendo tratado e para salvá-lo era preciso fazer de forma coletiva. Por isso que veio a Meta, a gente tinha que estabelecer um prazo, estabelecer como fazer isso. 

 

Você acredita que a Expedição teve algum impacto nas políticas públicas socioambientais e na criação de consciência sobre a revitalização de rios em MG?

 

Ronald: A própria consolidação da Meta 2010, e depois Meta 2014 teve um grande impacto, justamente no sentido de mostrar a necessidade. Alguns resultados nós conseguimos: ampliar a despoluição do rio, as políticas públicas de saneamento, a atuação da Copasa na despoluição da RMBH e isso tudo reflete na qualidade das águas. 

Em 2003, na RMBH era um rio morto. Sem a existência de peixes, em um mundo repleto de bactérias tentando decompor a grande carga orgânica que estava ali. E, com o tempo, a  gente começou a ver a volta do peixe.

 

Você percebe alguma relação entre os desafios das expedições e do trabalho como Assessoria Técnica Independente? Qual?

Ronald: Tem toda relação, a gente está falando de processos em que o modelo econômico e de exploração vigente não respeita a própria natureza. Nem os ecossistemas e a biodiversidade e as paisagens naturais, e muito menos respeita a natureza humana. A relação é a mesma, uma ambiente degradado, que causa danos à qualidade de vida das pessoas.

Onde o maior interesse é o resultado econômico e por isso se passa por cima de critérios que poderiam ter mais controle e qualidade nesses empreendimentos, os resultados são esses que a gente vê. A escala da produção foi aumentando e a escala dos danos também, tanto em Fundão, como em Brumadinho. O rompimento dessas barragens e possibilidade de novas rupturas, demonstram essa relação exploratória. A Expedição chamou a atenção para isso. 

A gente precisa construir modelos que tenham mais qualidade e o Rio espelha essa qualidade, mostra como é o modelo civilizatório. É importante, inclusive, que as populações desses territórios percebam o pertencimento às Bacias Hidrográficas, porque o rio reflete a qualidade de vida.

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