Os impactos do risco de rompimento e obras de descaracterização da Barragem Doutor, da Vale, ocuparam parte significativa da conversa entre representantes do povo indígena Borum-Kren e os dois servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estiveram em Antônio Pereira no dia 25 de setembro. A condição de medo e violações de direitos impostos pela mineradora, bem como a perda de área produtiva em razão da Zona de Autossalvamento (ZAS), o impedimento de praticar o garimpo tradicional e de acessar as cachoeiras e áreas da mata atlântica do distrito, foram alguns dos pontos levantados durante a visita.
De acordo com Pablo Matos Camargo, historiador e indigenista da Funai na Coordenação Regional de Minas Gerais e Espírito Santo, essa primeira visita teve como objetivo conhecer as principais demandas, a história e o território usado pelo povo Borum-Kren. “Tudo que for demandado, que tiver na responsabilidade de ação da Funai, a Fundação vai colocar como Plano de Trabalho futuro”. Entre as responsabilidades da Funai estão a gestão ambiental e territorial, além dos direitos sociais, previdenciários, saúde e educação da população indígena.
Ao lado de Jordana Gabriela Fernandes, especialista em indigenismo da Funai, Pablo esteve, entre os dias 23 e 26 de setembro, na região de Mariana e Ouro Preto para a realização da visita de qualificação de demandas junto ao povo Borum-Kren do território. A visita é fruto de uma demanda do cacique Danilo Borum-Kren, que em 2022, solicitou a vinda do órgão federal responsável por proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil.
O reconhecimento da ressurgência do povo Borum-Kren, que envolve a retomada de sua cultura, tradições e identidade, foi um dos motivos que levou o cacique Danilo a demandar essa visita. “A Funai vindo no território já é uma forma de reconhecimento oficial do Estado. Vir aqui e poder escutar as demandas da gente, ver as nossas lutas, ver as pautas”. O cacique destaca que este é o começo de um processo. “Isso é um início, a vinda da Funai. Várias outras vezes eles virão, pra gente poder trazer as nossas pautas, a luta e também trazer uma melhor condição de vida para as pessoas do nosso povo aqui no território”.
De acordo com Pablo, após esse primeiro contato, estudos e trabalhos ainda estão por vir, para que a Funai possa entender a dinâmica social dos Borum-Kren no território. “Deu pra perceber que são famílias tradicionais de origem indígena muito forte, com memória muito forte e muito próxima, e que se reconhecem como indígenas com o etnônimo de Borum-Kren”. Ele destaca que a comunidade precisa continuar demandando a Funai, isso porque “as demandas não são congeladas, elas vão acontecendo”.
Para Aliliane de Oliveira Veríssimo, indígena Borum-Kren, garimpeira tradicional, membro da Comissão de Pessoas Atingidas de Antônio Pereira e moradora do distrito, a presença do órgão federal no território é crucial. “É muito importante porque através da Funai a gente vai ser reconhecido mesmo como povo indígena. Como povo que luta por tá na terra, por plantar e colher o que está na terra. Viver do seu próprio suor”.
A violência contra mulheres indígenas, que deixa marcas profundas em todas as suas descendentes, é o sequestro e estupro de jovens “pegas no laço” e “amançadas” por homens brancos. Homens que chegaram ao Brasil por meio da colonização europeia e que usaram de violência para subjugar e exterminar os povos originários, verdadeiros “donos” da terra. A luta de Aliliane, pelo reconhecimento de sua origem, de sua existência enquanto mulher Borum-Kren, passa também pela necessidade de honrar sua bisavó, Adélia Caetana de Oliveira. Aliliane conta que sua bisavó foi “pega no laço e violentada”. Apesar da violência, vovó Sadela, como carinhosamente é lembrada pela bisneta, se tornou uma mulher corajosa e amorosa com a família. Aliliane se lembra de ter passado a primeira infância em companhia da sua bisavó, que dona de uma energia ímpar, viveu até os 136 anos.
O processo de autorreconhecimento como mulher indígena trouxe para Aliliane alívio a respeito da própria identidade e modo de estar no mundo. “Até então eu brigava muito comigo mesma, sem saber porque eu era assim. Quando eu queria uma coisa eu batia o pé, não aceitava outra coisa, pegava pirraça e ia para o meio do mato”. A busca pela natureza é, para ela, uma forma de se conectar com essa ancestralidade. “Descobrir que essas raízes vêm da minha bisavó, que é o sangue que corre na veia, é muito bom. É me descobrir novamente e aceitar minhas raízes”, afirma ela.
O povo Borum-Kren tem, pelo menos, dez famílias residentes em Antônio Pereira, atingidas pelo risco de rompimento e obras de descaracterização da Barragem Doutor, da Vale. Ao todo, o Instituto Guaicuy, que atua como Assessoria Técnica Independente das pessoas atingidas pela Vale no distrito, conseguiu mapear, até o momento, 31 pessoas adultas e 12 crianças da etnia Borum-Kren.
Esses dados são fruto de um processo de levantamento e caracterização preliminar dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) presentes em Antônio Pereira. Além do povo indígena Borum-Kren, foram identificados ciganos Calon, benzedeiras e uma grande comunidade de garimpeiras e garimpeiros tradicionais.
O objetivo desse levantamento realizado pela ATI Antônio Pereira é tratar dos direitos dos PCTs de Antônio Pereira, especialmente para serem consultados previamente, incluídos, reconhecidos com respeito às suas especificidades e tratados como grupo prioritário no processo de reparação dos danos causados pela mineradora no distrito.
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