Você já parou para pensar sobre qual a relação entre a indústria mineral, que é extrativista em larga escala, e as queimadas de grandes proporções que assolam as serras da região dos Inconfidentes?
Antes de mais nada, é preciso pontuar: os incêndios precisam ser investigados. Se forem provocados intencionalmente, os criminosos precisam ser identificados, devidamente responsabilizados e responder pelo crime no rigor da lei, que prevê pena de reclusão, de três a seis anos, e multa.
Dito isso, o fato é que um incêndio, de grandes proporções, queima tudo que é vivo na Serra de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto/MG, desde o dia 28/9. Segundo informações dos moradores, o incêndio teve início próximo ao talude (barranco) cimentado pela mineradora Vale, no contexto das obras de descaracterização da Barragem Doutor. Gestora ambiental e moradora de Antônio Pereira há 20 anos, Sandra Andrea Faria, 49 anos, relata o momento em que se deparou com o fogo. “Eu vi a chama por volta de meio-dia, já estava na serra, da minha casa dá para ver. Aí, na hora que eu saí na rua, por volta das duas, eu estava indo para reunião do Guaicuy, encontrei com meu vizinho, que me falou que o fogo começou lá no vertedouro de manhã”.
As ações preventivas tomadas pela Vale, caso tenham ocorrido, não foram suficientes para impedir que o incêndio se alastrasse. Segundo o coordenador da Brigada 1 de Ouro Preto, Rômulo Reis Pereira (Rominho), 40 anos, a região da Barragem Doutor é crítica. “Eu já combati vários incêndios ali”, afirma ele. Por isso, de acordo com Rominho, que também é engenheiro ambiental, a Vale possui uma equipe fixa de brigadistas, e deveria estar atenta para iniciar, de pronto, o controle do incêndio. “Eu acho que o que aconteceu foi a demora no primeiro combate, porque ali é uma região que o combate inicial não é tão complicado”, conclui.
Na tarde do mesmo dia, a Área de Proteção Ambiental (APA) da Cachoeira das Andorinhas e a Floresta do Uaimii foram atingidas pelo incêndio. De acordo com Ronald Guerra (Roninho), vice-presidente do Instituto Guaicuy e coordenador da Assessoria Técnica Independente de Antônio Pereira, a região, que engloba as cabeceiras da Bacia do Rio das Velhas e do Rio Doce, compõe um ecossistema cujas “ilhas de biodiversidade” são mantidas, no período de estiagem, pelo orvalho no alto da serra. Segundo Roninho, cada “ilha” tem uma flora específica e as perdas geradas pelo fogo são, em certa medida, irrecuperáveis. “Um incêndio dessas proporções queima toda a área, existe uma capacidade natural de recuperação do campo, do cerrado, mas nunca volta ao que era anteriormente, há uma degradação dessa biodiversidade”. Além de incinerar plantas e animais, de acordo com Roninho, incêndios como esse podem gerar impermeabilização do solo, deixando-o menos propício à infiltração de água e mais propício à erosão.
Realidade similar é testemunhada na Serra do Caraça, onde o fogo atingiu os arredores da Mina de Alegria, também de propriedade da Vale. O incêndio de grandes proporções arde há mais de três semanas e alcançou o entorno do Santuário do Caraça, que está fechado para visitação por tempo indeterminado.
De acordo com a reportagem do Jornal Lampião, Mariana e Ouro Preto, cuja parte significativa do território é tomada pela mineração, estão entre os 15 municípios com maior quantidade de focos de incêndio registrados em Minas Gerais no mês de setembro. Os dados são do BDQueimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e mostram que 25,6% (¼ do total) dos focos de incêndio no estado estiveram concentrados em 15 cidades, dentre elas, Mariana e Ouro Preto. O restante, 74,4% de focos, ocorreu nos outros 838 municípios mineiros.
Respirar em Antônio Pereira é adoecedor. A poeira, da mineração e das obras de descaracterização da Barragem Doutor, toma o distrito e representa um dos danos mais denunciados pela população atingida pelo risco de rompimento da barragem. Veja a matéria especial “Uma década pedindo socorro: o caso da poeira de mineração em Antônio Pereira/MG”.
Com o incêndio, que completa hoje uma semana, a situação fica ainda mais insuportável. “É um calor excessivo, a fumaça, uma falta de consideração com a comunidade porque… Acho que dava tempo de combater, eles deveriam estar atentos na área da Vale”, relata Sandra, que continua: “além da fumaça é a insegurança, um aperto no coração de vê a serra queimando, é uma sensação horrível”. Roninho corrobora esse sentimento, “um distrito rodeado de verde, circulado por um patrimônio natural belíssimo, vê em chamas toda essa natureza e todo esse patrimônio”, lamenta.
A presença da fumaça que Sandra relatou, pode trazer danos significativos à saúde das pessoas como irritação e ardência nos olhos, nariz e garganta, tosse, bronquite, sinusite, rinite, dor de cabeça, cansaço e ansiedade. Como bem relata Roninho, trata-se, portanto, de um acúmulo de danos à população que convive com o medo do rompimento e os prejuízos causados pela obra de descaracterização da barragem há mais de quatro anos. “Os impactos são do campo social e também ambiental, como o aumento da poluição atmosférica e sonora, do trânsito nas rodovias e, agora, nesse período mais seco, esses impactos somam poeira e fumaça e tomam mais proporções, prejudicando muito a qualidade do ar”, observa o coordenador da ATI Antônio Pereira.
Morador do distrito de São Bartolomeu, vizinho de Antônio Pereira, Roninho relata que a Floresta do Uaimii, que está em chamas, fica muito próxima da sede do distrito. “A qualidade do ar em São Bartolomeu está muito ruim também, a fumaça amplia danos para o entorno de Antônio Pereira… É impressionante, tá tudo enfumaçado!”, relata ele.
Diante deste cenário de absurdos, Sandra envia seu recado à mineradora causadora de tantos males: “Quero pedir para a Vale jogar limpo com a comunidade. Porque do jeito que ela está fazendo com a gente, a poeira é uma situação insuportável… Parece que tá fazendo as pessoas desistirem de Antônio Pereira”.
A população de Antônio Pereira não foi informada pela Vale sobre as ações tomadas para controlar o incêndio e nem sobre um plano de combate às queimadas. Sandra, que é gestora ambiental, conta que estranhou a forma como o combate ao incêndio foi feito. “No domingo (29/9) o helicóptero estava pegando a água do tanque da Fazenda e ia até certo ponto, mas quando estava pegando fogo no túnel, onde passa o trem da Vale, deixava queimando e não jogava água lá. Achei estranho, deixar queimar uma parte. Até hoje está queimando nessa área, da minha casa dá para ver”, relata ela.
Entre as medidas de prevenção a incêndios que deveriam ter sido adotadas pela Vale, Rominho destaca o monitoramento da área. “O monitoramento é uma atividade fundamental, colocar equipes fazendo ronda é importante para poder inibir ações de piromaníacos”. Além disso, a mineradora deveria fazer, e garantir a manutenção, de aceiros – que são “caminhos”, criados a partir da remoção de vegetação, que facilitam o combate a incêndios. “A confecção de aceiros daria certo na região, talvez poderia facilitar o deslocamento, uma rota de fuga para esses primeiros brigadistas que chegaram no combate”, afirma o brigadista.
Como até o momento não houve informações sobre as medidas de prevenção por parte da mineradora, o que se sabe é que o incêndio exige hoje um enorme esforço coletivo, mobilizando o corpo de bombeiros militar, o Comando de Aviação do Estado de Minas Gerais, a Coordenadoria Municipal de Defesa Civil de Ouro Preto, a brigada da ONG Associação Mineira de Defesa do Ambiente, contratadas pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF) para a Unidade de Conservação, a Força Tarefa Previncêndio, a própria mineradora, a Brigada APAS e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) – representados pelos Brigadistas do Parna Caparaó e da FLONA Ipanema, e a Brigada 1 de Ouro Preto. Estes últimos merecem uma menção especial, de acordo com Rominho os brigadistas voluntários “vão por amor mesmo, gostam do que fazem e vão lá pra ajudar”. Um incêndio dessas proporções sensibiliza e mobiliza muitas pessoas, que buscam minimizar os impactos do fogo.
O corpo de bombeiros é, desde o decreto estadual nº 48.767, de 26/01/2024, o principal responsável pelas operações de combate a incêndios florestais. O decreto cria uma coordenação operacional, que ficou a cargo do Corpo de Bombeiros, para gerir as políticas voltadas para o combate e prevenção aos incêndios florestais. À reportagem do jornal Brasil de Fato, o vice-presidente do Sindicato dos Servidores Estaduais do Meio Ambiente e da Arsae (Sidsema), Cristiano Tanure, declarou: “Pelo decreto, quem comunica o IEF sobre o incêndio é o Corpo de Bombeiros. É como se você falasse para o dono da casa que a casa dele está pegando fogo”. Isso evidencia a ineficiência do novo modelo, uma vez que o IEF faz a gestão de cerca de 100 unidades de conservação em Minas Gerais.
Rominho aponta ainda a carência de pessoal no corpo de bombeiros para controlar o volume de incêndios na região dos inconfidentes. “A gente sabe que, infelizmente, o corpo de bombeiros tem um efetivo pequeno para dar conta do tamanho da demanda”. O coordenador da Brigada 1 de Ouro Preto avalia que o governo estadual precisa reduzir o rigor deste decreto: “ele dificulta a ação das brigadas voluntárias e de outras entidades. Então isso também atrapalha na operação”.
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