No fim de outubro, um passo importante foi dado no processo de reparação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Após duas sessões de julgamento de recurso apresentado pela mineradora, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ficou definido que haverá um processo de resolução (liquidação) coletiva das indenizações individuais — ou seja, que as pessoas atingidas não precisarão necessariamente entrar na Justiça individualmente contra a Vale para solicitar as indenizações e que os valores pagos por cada tipo de dano serão padronizados — e também que, nesse processo, haverá inversão do ônus da prova.
Essa inversão, além de uma expressão difícil, não é muito comum em processos judiciais. No entanto, a decisão é importante e positiva, pois facilitará o acesso à indenização pelo rompimento. Com a inversão do ônus, as pessoas atingidas ainda precisarão juntar uma documentação para comprovarem que elas atendem aos critérios de quem poderá receber indenização, mas não precisarão comprovar os danos sofridos, pois a responsabilidade de apresentar provas de que o rompimento não teria causado os danos levantados pelas Instituições de Justiça fica com a Vale. Entenda mais sobre como isso funciona.
Antes de tudo, é importante compreender o que significa ônus da prova dentro de um processo judicial. Quando existe uma disputa, a regra geral é que a pessoa ou a instituição que alega ter sido prejudicada tenha o encargo de comprovar as suas afirmações, sustentando-as por meio de ferramentas legais, como a apresentação de documentos, fotos e de depoimentos de testemunhas. Ou seja, de oferecer informações e materiais que podem influenciar a opinião do juiz.
O ônus da prova é chamado de encargo porque, tecnicamente, não é tratado como um dever ou uma obrigação. No direito, quando uma parte (cada “lado” da relação processual) não cumpre um dever, ela sofre uma sanção, uma penalidade. Não existe punição prevista para a falta de apresentação de provas. No entanto, deixar de apresentá-las pode acabar acarretando na perda do processo, já que um juiz não deve realizar uma condenação sem provas. A Constituição Federal Brasileira determina que, a princípio, os réus dos processos são inocentes, a não ser que se prove o contrário.
Nesse contexto, as pessoas atingidas, representadas pelas Instituições de Justiça no processo coletivo contra a mineradora, teriam que conseguir comprovar que os danos que elas vêm sofrendo desde janeiro de 2019 (alguns exemplos são perda de renda, insegurança alimentar, problemas de saúde física e mental) têm relação com o rompimento da barragem da Vale. Caso não houvesse provas suficientes, elas não teriam acesso à indenização, pois a determinação de qual parte tem ônus da prova também indica quem está em situação desfavorável no caso de ausência.
O movimento chamado de inversão de ônus da prova flexibiliza a regra geral do processo judicial, fazendo com que a apresentação de provas durante o processo seja um encargo do réu, não da parte da acusação. Essa é atribuição diversa é feita pelo juiz, mas não é uma escolha arbitrária. Para que a inversão aconteça, é preciso que a decisão seja realizada de maneira justificada.
A inversão do ônus da prova está prevista em algumas legislações, como no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor. Ela tem a função de promover um equilíbrio processual na relação, já que é muito comum que o consumidor tenha menos conhecimento técnico e poder financeiro do que uma empresa. Imagine que uma pessoa comprou um celular e ele estragou muito rápido, bem antes do tempo de vida esperado para um aparelho como esse. É muito difícil que a pessoa que adquiriu o dispositivo consiga comprovar que ele deixou de funcionar antes da hora. Com a inversão do ônus da prova, a empresa fabricante é que teria que comprovar que o celular foi vendido em perfeitas condições.
No entanto, a inversão não é automática. O juiz só pode optar por solicitá-la se dois requisitos forem atendidos: verossimilhança e hipossuficiência. Isso significa que a alegação da acusação deve parecer possível e realista (verossimilhança) e que ela não dispõe de conhecimento técnico e/ou financeiro para realizar a produção das provas (hipossuficiência).
Como exemplo real, temos uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que definiu que cabia a inversão em uma ação sobre vícios de construção em imóvel para pessoas de baixa renda:
Um condomínio residencial composto por beneficiários de um programa habitacional ingressou com uma ação contra a Caixa Econômica Federal (CEF) pedindo indenização de danos materiais por problemas nas áreas comuns do imóvel. Nessa situação, a CEF deteria mais conhecimentos técnicos para provar que o imóvel foi entregue em perfeitas condições, se for o caso.
Apesar de ser mais comum em relações de consumo, a inversão do ônus da prova é possível também em outros casos — isso está explicitado na Súmula nº 618 do Supremo Tribunal de Justiça, de 2018. Esse documento, que contém orientações resultantes de um conjunto de decisões sobre um determinado assunto, trata do fato de que a inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental.
Isso justifica a escolha do juiz Murilo Silvio de Abreu, responsável pelo processo relacionado à reparação pelo rompimento da barragem da Vale, de acatar a sugestão das Instituições de Justiça e determinar a inversão do ônus da prova. A degradação causada pelo desastre-crime é real e a empresa inclusive já foi condenada a pagar por ela no processo sobre danos coletivos e difusos.
Agora, no âmbito do processo coletivo de indenizações individuais, não cabe mais às pessoas atingidas se esforçarem para tentar provar que os danos sofridos, muitos já levantados em perícias e em estudos realizados pelas Assessorias Técnicas Independentes, são decorrentes da degradação causada pelo desastre-crime. Caso a mineradora tente não indenizar essas pessoas, ela deverá conseguir provar que não há relação de causalidade entre o rompimento da barragem e os danos sofridos.
A inversão do ônus da prova tem implicações significativas para o andamento do processo de reparação e pode agilizar e facilitar o acesso das pessoas atingidas às indenizações. Isso é especialmente importante dado o contexto de desigualdade imensa de recursos entre as partes. Além de beneficiar as pessoas atingidas por esse rompimento, a decisão também pode influenciar outros processos judiciais relacionados a desastres ambientais no Brasil, ao estabelecer que situações de vulnerabilidade demandam uma abordagem judicial que facilite sua defesa e busca por reparação.
Imagem destacada: Acervo Guaicuy
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