Após mais de cinco anos de luta da sociedade civil para barrar a mineração na Serra do Curral, que já dura décadas, a atividade segue acontecendo, machucando não só a paisagem, mas piorando a qualidade de vida de quem vive na capital mineira e no seu entorno. As ações, muitas vezes ilegais, das empresas envolvidas estão destruindo matas, nascentes e extinguindo espécies vegetais que são próprias desses locais e que deveriam ser preservadas.
No dia 29 de julho, aconteceu mais um capítulo dessa história: o Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) concedeu licença ambiental para que a Fleurs, uma das empresas predadoras da Serra do Curral, possa minerar o local. Cabe lembrar que o Conselho ignorou as 17 autuações por crime ambiental que a empresa acumula na Justiça Federal. Além disso, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM) não respondeu às manifestações das entidades da sociedade civil após a audiência realizada em fevereiro deste ano, apontando mais uma irregularidade no processo.
O Copam aprovou o pedido de licença de operação, às margens do Rio das Velhas, na divisa entre Raposos, Nova Lima e Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte. Dias antes de ser concedida autorização, o Guaicuy havia entrado com um mandado de segurança na Justiça Estadual pela suspensão do licenciamento, mas mesmo assim a votação aconteceu normalmente. “Antes, a mineração ocorria na Serra por meio das brechas das lei. As empresas conseguiam atuar ali via Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e outras estratégias ilegais, mesmo se tratando de um lugar que está sob tombamento provisório, a nível estadual. Essa licença abre um precedente perigosíssimo, que vai contra todas as ações de proteção da Serra. Se antes ela já era destruída, sem a existência de licenças concedidas, imaginem agora.”, alerta Pedro Andrade, advogado do Guaicuy.
Ainda existe quem olhe por determinado ângulo o paredão da Serra do Curral, uma moldura de Belo Horizonte em forma de montanha, e não imagine o quanto esse patrimônio nacional, de Minas Gerais e de Belo Horizonte está sendo retalhado. Enquanto poucos ganham altas quantias de dinheiro explorando seu minério, a população paga um preço alto. Pensando nisso, o Guaicuy preparou um resumo para quem quer entender os motivos que deveriam envolver a sociedade civil neste debate e o que está acontecendo nos espaços decisórios.
A Serra do Curral é guardiã de águas. Ela se estende da divisa dos municípios de Raposos, Sabará e Nova Lima, na porção leste, até a divisa dos municípios de Ibirité e Brumadinho, na porção oeste. Ela guarda nascentes que alimentam tanto a Bacia do Rio Paraopeba quanto o Rio das Velhas, responsáveis por praticamente todo o abastecimento da Região Metropolitana da capital mineira. Do lado sul da serra, diversos mananciais repõem a água que Copasa retira na Estação de Bela Fama. No seu lado norte, existe uma reposição importante de água que é a do rio Arrudas. Na Serra do Curral nascem os córregos da Serra, córregos do Clemente, Capão da Posse e Córrego do Barreiro, dentre outros.
A Serra também contribui para manter equilibrado o clima de Belo Horizonte. Além disso, ela é parte da identidade da capital mineira, já que sua paisagem marca de forma inquestionável o horizonte. Por todos estes motivos, o tombamento estadual da Serra do Curral está em curso, aguardando desde 2020 a votação do Conselho Estadual de Patrimônio Cultural (Conep). Mas a Serra já é tombada pelo município de Belo Horizonte. Além disso, o Pico Belo Horizonte, localizado na Serra, é tombado pelo Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Para completar, ela ainda é casa para a comunidade Manzo Ngunzo Kaiângo, quilombo que resiste e conserva sua cultura entre suas montanhas. Reconhecido como patrimônio cultural imaterial da capital mineira, o quilombo é um importante aliado nos movimentos de proteção da Serra.
Minerar a Serra do Curral, como já vem acontecendo, significa destruir o meio ambiente, aumentar o risco de doenças respiratórias da população e, mais do que isso, significa destruir o símbolo da cidade e apagar parte da memória de seus cidadãos.
Desde 2018, a mineração ilegal na Serra do Curral vem se intensificando. O que demonstra isso são as sucessivas tentativas de licenciamento ambiental em busca da permissão para a exploração de seus recursos naturais. A Empabra, a Tamisa/Taquaril, a Fleurs Global e a Gute Sicht são as mineradoras que estão tentando, a todo custo, explorar o território. A coleção de irregularidades envolvendo estas empresas é extensa e não pode ser ignorada.
Em 2019, a Empabra foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de Belo Horizonte por suspeitas de exploração ilegal, em 2018, e enfrenta na Justiça um pedido de suspenção de suas atividades. Já a Fleurs foi alvo da operação Poeira Vermelha, da Polícia Federal, em 2020, e também já teve suas atividades suspensas pela Justiça algumas vezes, por desmatar de forma irregular áreas protegidas, ocupadas por vegetação do cerrado, mata atlântica e mata de galeria. A Fleurs já provocou no território o assoreamento de curso d’água, entre outros crimes ambientais graves, com grande prejuízo aos cofres públicos.
A Taquaril chegou a conseguir aprovar um licenciamento no Copam, após várias manobras dentro de instâncias do Governo Estadual. Mas, em 2023, a licença foi suspensa, após um recurso proposto pelo Ministério Público de Minas Gerais. Já a Gute Sicht teve suas atividades realizadas por meio de Termo de Ajuste de Conduta interrompidos pelo Supremo Tribunal Federal, a pedido da Prefeitura de Belo Horizonte, por estar acontecendo em área tombada, desrespeitando a lei.
De acordo com Jéssica Galvão, advogada do Projeto Manuelzão, o TAC é uma das principais vias usadas pelas mineradoras para atuarem na Serra do Curral. O termo é um acordo que o Ministério Público fecha com as empresas, devido à violação de determinado direito coletivo cometido por elas, com o intuito de impedir que a situação de ilegalidade perdure e precise chegar a outras instâncias da Justiça. “Na prática, as empresas aproveitam os TACs para se comprometem a recuperarem áreas que elas mesmas degradaram mas, ao invés de cumprir o acordo, elas realizam escondido uma nova atividade de lavra, sob o manto da ilegalidade”, explica.
Pedro Andrade afirma que o licenciamento conquistado pela Fleurs na última semana é motivo de alerta por ter acontecido sem o respeito ao devido processo administrativo determinado pela lei. “Não foram respondidas todas as irregularidades apontadas tanto pela sociedade civil quanto por equipes técnicas referentes ao projeto da Fleurs. Isso abre caminhos para que outros licenciamentos sejam aprovados sem que a própria comunidade atingida pela mineração seja respeitada”, complementa.
A conivência do Governo do Estado para a aprovação do licenciamento também chama a atenção de quem observa a atuação das empresas na Serra do Curral. “Por isso o tombamento em nível estadual, que está em curso, é tão importante. O Estado é um dos principais órgãos competentes para a concessão de licenças ambientais. Se a Serra do Curral está protegida por um tombamento em nível estadual, isso constrange os supostos interesses políticos de quem quer entregar a Serra às mineradoras. O tombamento estadual protege a Serra do próprio Estado”, diz.
Agora, é hora de tentar barrar essa decisão na Justiça, por meio de uma ação movida pelo Ministério Público Estadual, já que ela é um perigoso precedente para as outras empresas.
O Guaicuy também entrou com um mandado de segurança para tentar barrar a Fleurs. Enquanto isso, a sociedade civil pode aproveitar para compartilhar informações sobre o movimento de proteção à Serra do Curral para não deixar esse assunto ser esquecido, além de cobrar, tanto do MP quanto do governo do Estado, que a lei seja cumprida.
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