Instituto Guaicuy

Rompimento da Barragem de Fundão: nove anos de impunidade e de luta por reparação integral

5 de novembro, 2024, por Ellen Joyce Marques

Após o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, dirigentes da Samarco, Vale, BHP e da consultoria VogBR, que atestou a segurança da barragem, nunca foram responsabilizados pelas 19 mortes e crimes ambientais cometidos. 

Relógio em Paracatu de Baixo, distrito de Mariana. Foto: Tainara Torres

Há exatos nove anos rompia a Barragem de Fundão, das mineradoras Samarco, Vale e BHP, em Mariana. Trata-se do maior crime socioambiental do Brasil e um dos maiores do mundo envolvendo barragens da mineração. Foram 19 pessoas mortas e um aborto provocado pela imensa onda de lama tóxica. Estima-se que o estouro da barragem liberou entre 43 e 62 milhões de metros cúbicos de rejeito, que percorreu centenas de quilômetros desde o Rio Gualaxo do Norte, destruindo toda a bacia do Rio Doce, até desaguar no Oceano Atlântico pelo litoral do Espírito Santo, chegando ao arquipélago de Abrolhos, na Bahia. São comunidades inteiras devastadas, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, e Gesteira, em Barra Longa. São cerca de 50 municípios e, pelo menos, dois estados (MG e ES) atingidos. Diante disso, em novembro de 2016, a Justiça acatou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra 22 pessoas e as empresas Samarco, Vale, BHP e VogBR pelo rompimento da Barragem de Fundão, tornando-os réus por crimes ambientais e pelos 19 homicídios. As acusações de homicídios foram engavetadas e hoje, apenas sete pessoas e as quatro empresas são rés no processo por crime ambiental. Até o momento ninguém foi responsabilizado criminalmente. 

Casa em Bento Rodrigues, distrito de Mariana. Foto: Hariane Alves

Em razão de tudo isso, o dia de hoje, 5 de novembro, é uma daquelas datas tristemente memoráveis, que marcam a história de um povo profundamente. Tanto que, nove anos depois, a memória coletiva preserva o mar de lama como um marco da ganância perpetrada pela mineração predatória e da impunidade de poderosos no país. Sem responsabilização real dos culpados e sem que houvesse reparação integral dos danos causados, apenas três anos depois o crime é continuado. Em 25 de janeiro de 2019 rompeu a Barragem da Mina Córrego do Feijão, da reincidente Vale, em Brumadinho. Com os dois crimes-desastres acendeu-se o alerta: não estamos seguros. Há bombas relógio em todo o estado de Minas Gerais, e muitas outras espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.

As barragens construídas à montante, um método que economiza dinheiro e coloca as vidas de milhares de pessoas em risco, foram proibidas e, grande parte delas, passa hoje pelo processo de descaracterização. Esse é o caso da Barragem Doutor, também da mineradora Vale, que, em abril de 2020, teve seu nível de risco elevado para dois, numa escala que só vai até três. Com isso, a Vale gera pânico e danos continuados nas vidas de todas as moradoras e moradores do distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto. O distrito é vizinho da região onde rompeu a Barragem de Fundão e sofre também com o luto. Entre os 19 mortos, dois eram moradores de Antônio Pereira, além disso, muitos outros impactos desse crime-desastre afetam, até hoje, a comunidade. Leia o texto: “O que o distrito de Antônio Pereira tem a ver com o rompimento da Barragem de Fundão?” e entenda mais sobre o fato de o povo de Antônio Pereira ser duplamente atingido por barragens da mineração. 

A Justiça chega?

Ao longo de nove anos de luta organizada do povo atingido, muitas conquistas foram alcançadas. Em Mariana, a população dos distritos atingidos, organizada na Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) , conquistou o direito à Assessoria Técnica Independente e à não permuta, a partir da qual as mineradoras não puderam “comprar” com lama as propriedades das famílias atingidas, que seguem donas de seus imóveis de origem. Além disso, conquistaram os reassentamentos familiares e coletivos, que apesar dos inúmeros percalços impostos pela Fundação Renova, começaram a ser entregues às famílias que sofreram deslocamento compulsório.

Imóvel em Bento Rodrigues. Foto: Hariane Alves

Foi também a partir dessa luta que a ideia-força de reparação integral se consolidou em seus sete eixos: mitigação, restituição, reabilitação, compensação, indenização, medidas de satisfação e ações de não-repetição. Estas e outras vitórias abriram caminho para a mudança na legislação e para os direitos conquistados tanto na lei nº 23.795/2021, que institui a Política Estadual dos Atingidos por Barragens de Minas Gerais (PEAB/MG) quanto na lei nº 14.755/2023, que estabelece a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB). 

Acordos sem participação não geram reparação!

No Brasil, os esforços de reparação dos danos causados pela barragem da Samarco sempre foram feitos pelas vias extrajudiciais. Em 2016 foi celebrado um acordo, um Termo de Transação de Ajuste de Conduta (TTAC), que estabelece programas e critérios de reparação socioambiental, além de criar a Fundação Renova, uma junção das três mineradoras que passou a ser responsável por executar as ações reparatórias. Feito sem a participação da população atingida, o acordo ignora a realidade material do povo atingido e coloca nas mãos das empresas criminosas, por meio da Fundação Renova, a decisão de quem é ou não atingido e a forma como essa reparação deveria se efetivar. Com essa falha estrutural, causada pela arrogância de engravatados que acham que conseguem decidir pela vida alheia, o acordo não garantiu a efetiva reparação. 

Roupas no varal em Bento Rodrigues (2016). Foto: Hariane Alves

Diante disso, em 2018 foi feito um novo acordo, o Termo de Ajuste de Conduta para a Governança da reparação (TAC Gov.), mais uma vez sem a participação das pessoas atingidas. O TAC Gov pretendia, justamente, corrigir a falta de participação popular, criando instâncias de representação das comunidades atingidas em caráter consultivo, não deliberativo, nos programas e ações de reparação geridos pela Fundação Renova. Esse acordo nunca se efetivou. 

Denúncias de propaganda enganosa por parte da Fundação Renova, morosidade e pouca efetividade no processo de reparação levaram à discussão acerca de uma repactuação dos acordos firmados. Em meados de 2020 um novo acordo começa a ser articulado. Na mesa de negociações, encontravam-se as empresas responsáveis pelo crime, Samarco, Vale e BHP, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, o Ministério Público Federal, os Ministérios Públicos de Minas Gerais e do Espírito Santo e as Defensorias Públicas dos dois estados, mas nenhuma pessoa atingida. As negociações corriam em segredo de justiça, mas em setembro de 2022, os Governos de Minas Gerais e do Espírito Santo decidiram encerrar o processo de repactuação sem acordo. Há época, o Ministério Público Federal divulgou um comunicado oficializando o fim das negociações, isso porque os estados discordaram dos valores e prazos colocados pelas mineradoras, que seriam de apenas R$65 bilhões pagos ao longo de 16 anos.

Em 2023 o Governo Federal articulou a retomada das negociações de um novo Termo de Ajuste de Conduta, que resultou na conclusão da repactuação com o acordo assinado no dia 25 de outubro deste ano, às vésperas dos nove anos do crime-desastre. Ao todo R$132 bilhões serão destinados para as ações de reparação integral que deverão ser realizadas no intervalo de cinco anos. Com isso, as empresas deixam de ter obrigação de fazer a maior parte das ações reparatórias e ficam apenas com o dever de pagar pela reparação. Um dos destaques do novo acordo é a extinção da Fundação Renova.

Amplamente criticado por repetir o mesmo erro dos outros acordos, pois foi realizado em segredo de justiça e sem a efetiva participação das pessoas atingidas, o novo acordo foi assinado apenas quatro dias após o início do julgamento que busca a responsabilização da BHP em Londres. A Justiça Inglesa deve concluir o julgamento em março de 2025, uma vez que trata-se da maior ação ambiental coletiva já registrada na corte inglesa e um dos maiores julgamentos de crimes ambientais da história

Justiça virá de fora do Brasil?

Em julho de 2022 a corte da Inglaterra declarou sua competência para o julgamento da mineradora anglo-australiana BHP que, junto da brasileira Vale, controla a Samarco. O julgamento começou no dia 21 de outubro e tem como critério as legislações ambiental e civil brasileiras, apesar de o processo correr em um tribunal britânico. A ação é a maior do mundo porque os pedidos de indenização somam US$46,8 bilhões (o equivalente a R$243,36 bilhões) e são movidos por, pelo menos, 620 mil vítimas do crime-desastre. Na ação constam ainda 46 municípios, além de comunidades quilombolas, instituições religiosas e do povo indigena Krenak. 

Caso seja declarada culpada pelo crime ambiental, a BHP enfrentará um segundo julgamento para definir o valor da indenização que cada pessoa, município, instituição ou comunidade tradicional deverá receber. Metade do valor definido seria pago pela Vale. O julgamento é inédito no ramo corporativo e pode significar um precedente importante em relação à responsabilização civil por crimes ambientais cometidos por empresas multibilionárias e superpoderosas como a BHP, que é a maior mineradora do mundo, e a Vale, que figura em quarto lugar na lista das maiores do ramo.

Ato em Bento Rodrigues, dia 5 de novembro de 2024. Foto: Camila Bento/Instituto Guaicuy

Dentro e fora do Brasil, quem sabe a forma como a reparação deve se efetivar são as pessoas atingidas, aquelas que vivem na pele, cotidianamente, os danos causados pelas gigantes que são ícones da mineração predatória. A reparação integral é possível, mas depende da efetiva responsabilização das mineradoras. Só assim, a justiça irá chegar para as pessoas atingidas pela Barragem de Fundão.

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