Memórias de infância ganham um colorido especial quando protagonizada pelas vovós. Com Leandro Ferreira, 37 anos, não é diferente. O sorriso aparece até na voz ao relembrar os inesquecíveis momentos em que a avó Leontina, cercada das dezenas de netos, olhava em direção ao Rio São Francisco da porta de sua cozinha, enquanto lavava a pia, e contava para a criançada as incontáveis lendas guardadas pelas águas do Velho Chico. “Ela contava pra gente o que ouvia dos avós dela, e a gente conta hoje pros nossos filhos, porque essas histórias vivem na gente”, diz.
Dona Leontina cresceu e criou seus onze filhos na beira do Rio São Francisco, em Silga, comunidade de Três Marias. Depois vieram as dezenas de netos, que cresceram ao redor da avó, na casa que ficava a 40 metros do rio. O São Francisco, segundo dona Leontina, era morada de figuras como o Caboclo d´Àgua, um ser parecido com os homens, responsável por cuidar de quem cuida do rio. “Eles não mexem com nada, nem ninguém, só protegem. Minha avó contava dos pescadores com costume de dormir na beira do rio que já viram ele rodeando”, relembra Leandro. “Dizem pra deixar fumo e cachaça pra ele vir”, complementa Camilli Ferreira, 15 anos, uma das filhas de Leandro.
Outra história traduzida por Dona Leontina era sobre a Mãe de Ouro. O ser encantado vive por entre a floresta, acompanhando o caminho de quem a atravessa durante a noite. “Mas é ela quem tem de te acompanhar, e não o contrário. Se você tentar acompanhá-la, ela desaparece”. Segundo Leandro, sua mãe e sua avó já conseguiram ver de perto a Mãe de Ouro, respeitando a companhia dela durante a travessia pelo mato.
Desde quando a barragem da Vale se rompeu em Brumadinho, em 2019, a vida de Leandro e de sua família passou por diversas mudanças. “Somos pescadores. Tudo que eu tenho, veio do rio. Lá é o meu escritório”, explica. Mas, como o Paraopeba é um dos afluentes do São Francisco, a presença do rejeito de minério afeta os dois rios. ”O turismo, que trazia muito trabalho pra gente, caiu bastante. E o peixe, nosso alimento e nossa riqueza, não conseguimos vender mais, porque o povo desconfia de contaminação”, comenta.
Enquanto conta as diversas violações de direitos sofridas por sua comunidade nos últimos anos, Leandro relembra da avó. “Ela tinha tanto amor por esse rio, tanto zelo. Não consigo nem imaginar como ela estaria de ver ele machucado assim. Gosto de pensar no Caboclo d´Água protegendo as águas e a gente, pra ter forças de virar esse jogo e ver os rios bonitos de novo”, reflete.
Texto originalmente publicado na 10ª edição do Piracema.
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