Em rodas de conversa realizadas pelo Guaicuy, mulheres das áreas 4 e 5 compartilharam reflexões e renovaram as forças na luta coletiva pela garantia de direitos
“Fomos prejudicados porque nosso peixe ficou com má fama. E nosso peixe era muito famoso. Então o que aconteceu foi uma grande desvalorização em nossa venda do peixe. Nosso peixe aqui ficou mal falado” (Simone de Assis, moradora de Abaeté)
“Com o rompimento, os pescadores do Rio Paraopeba migraram para o rio Pará e [isso] nos afetou, não podemos mais confiar nossas crianças a sós no rio, o lixo aumentou e assim diminuímos nosso lazer” (LíderJane, da etnia Kaxixó, moradora do município de Martinho Campos)
“Meu pai tinha dado uma kombi pra gente poder trabalhar aqui com eventos. Eu fazia pão de mel, bombom. Aí a gente parou. A kombi ficou parada. As pessoas falavam que o rejeito ia chegar aqui, até Três Marias. Falaram que o peixe estava contaminado. A gente parou de pescar” (Silvânia de Souza, moradora de São José do Buriti)
Mulheres agricultoras e pescadoras têm se tornado protagonistas no esforço de evidenciar riscos e impactos ambientais da mineração, do desmatamento e de megaprojetos no Brasil, denunciando o desrespeito à legislação ambiental, que exige Consulta Prévia Livre e Informada (Convenção 169 da OIT) aos povos tradicionais, a falta de transparência e de respostas de investigações.
Entretanto, essas vozes continuam sendo invisibilizadas nos espaços de participação e na luta por acessar seus direitos no processo judicial que busca a reparação integral e também na mídia comercial.
Diante deste cenário, o Instituto Guaicuy propôs junto às mulheres dos territórios atingidos das áreas 04 e 05 uma série de encontros mensais para debater as demandas provenientes do grupo. Em março, ritualizado enquanto “mês das mulheres”, também foram feitas algumas entrevistas com a pergunta motora “Qual reflexão você gostaria de trazer para esse dia das mulheres?” E nós seguimos refletindo sobre o tema e sobre a importância das mulheres na luta pela garantia de direitos.
Na ciência e em diferentes culturas a água, enquanto sua natureza, aparece como símbolo originário de vida, tendo suas variantes de acordo com as espacialidades, superfícies ou profundezas, e suas qualidades condicionais, em matéria ou virtualidade, como delineia Gaston Bachelard em seu livro A água e os sonhos, “as águas correntes, as águas amorosas, as águas profundas, dormentes, mortas, composta, doces, violentas (…)”. Concentramo-nos à água em sua origem: Desejo, maquinação de vidas.
Um corpo de mulher é composto por uma média de 60% de água. Quase como o planeta Terra que se compõe numa média de 70% de água. Nesses todos, de corpo e planeta, se encontram alguns afluentes: o Rio Paraopeba e as mulheres que com ele vivem.
Em 2019, as águas deste rio foram inundadas por uma grande quantidade de lama, advindas de uma das barragens de rejeitos de minério de ferro da empresa Vale, restos de minério misturados à água, líquido denso e represado que estourou na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais.
A lama percorreu um vasto caminho pelas águas do Paraopeba, de Brumadinho até Três Marias. Foi onde Carlos Drummond de Andrade, com sua triste e dinamitada natureza mineral, de montanha pulverizada num crime silencioso, estendido e sorrateiro (que continua sendo), encontrou Guimarães Rosa nas águas planas de seus sertões, num desastre-crime estrondoso e avassalador, de alcance mundial.
Através de algumas palavras propomos embarcar por estas águas de mortes e vidas. Ora em fluxo, de uma margem à outra, leste a oeste; ora, contracorrente. Seguindo pelas regiões de Felixlândia, Morada Nova de Minas, Pompéu e Curvelo, percebendo e dando a vista às mulheres feitas d’água.
Quando mulheres das águas se encontram, as conversas fluem e foi assim na roda de mulheres das águas da área 5 oeste, que reuniu cerca de 30 mulheres, dentre pescadoras, trabalhadoras do turismo e do comércio e residentes no entorno da represa de Três Marias.
Com histórias de beira d’água, com memórias compartilhadas uma “puxa” a outra, o lazer, trabalho e as gerações ligadas por águas fluidas. Com mística e metodologia participativa, as mulheres compartilharam suas rotinas durante a roda de conversa e contaram como foram afetadas pelo rompimento da barragem de Brumadinho.
“Antes eu acordava cedo, era uma correria só. Hoje em dia tenho tempo até para dormir durante o dia”, comenta Nilceia Ferreira, de Vau das Flores, comunidade do município de Morada Nova de Minas.
“Com o rompimento, os pescadores do Rio Paraopeba migraram para o rio Pará e [isso] nos afetou, não podemos mais confiar nossas crianças a sós no rio, o lixo aumentou e assim diminuímos nosso lazer”, relatou LíderJane, da etnia Kaxixó, no município de Martinho Campos.
“Coloco rede à tarde, lá pelas 16h e depois para correr a rede no outro dia é cedinho, umas 6h da manhã, antes do sol esquentar. Depois tiro o peixe, ele tá fresco, e coloco para conservar. Levo para casa, limpo e embalo o peixe no saquinho para congelar. Faço isso todos os dias sozinha”. Essa rotina é da pescadora Simone de Assis Duarte, de 54 anos, moradora de Vila Jataí, em Abaeté. Aprendeu com a bisavó Florinda o trabalho rural, desde criar porco até a produção de farinhas e queijo. Mas foi com o pai que descobriu sua principal fonte de renda e afeto – a pescaria.
Na infância, seu pai montava barraca em frente à represa de Três Marias e Simone e as irmãs pegavam piaba e lambari na peneira. “Era uma diversão para nós e foi assim que eu comecei, eu aprendi a pescar com meu pai”. Hoje, como pescadora profissional, ela afirma que o rompimento da barragem da Vale modificou sua principal renda e trouxe insegurança a esse ofício geracional. “Fomos prejudicados porque nosso peixe ficou com má fama. E nosso peixe era muito famoso. Então o que aconteceu foi uma grande desvalorização em nossa venda do peixe. Nosso peixe aqui ficou mal falado”, descreve.
O rompimento da barragem soterrou também modos de vida e histórias sobre o que existia ali antes do crime ambiental e outros impactos causados pelo megaprojeto. Com uma divisão do trabalho que acabou reforçada pela chegada da mineradora no local, enquanto homens eram a maioria trabalhadores da mina, mulheres desempenhavam papel importante na agricultura, na pescaria e outros trabalhos. No caso de Simone, estamos falando de uma pescadora que mora há quase 200 quilômetros do local do rompimento, moradora do pé da represa de Três Marias, mas que também teve sua vida alterada.
Simone cita outros exemplos de desigualdades no trabalho da pesca, como por exemplo, o fato de os pescadores homens estarem sempre em grupo na hora de jogar e “correr rede”. Já as mulheres costumam ir sozinhas. Além disso, “quando vamos vender os peixes aos peixeiros eles pensam que nós somos burras. Se ofereço um quilo de lambari por R$ 10, o peixeiro me diz que paga R$ 3”.
Esses valores mais baixos na negociação do peixe são um problema para os pescadores de Vila Jataí, após o rompimento da barragem de Córrego de Feijão. “Aqui tinha peixeiro de todos os lados. Mas, depois que houve o rompimento, só tem dois peixeiros que vêm, um de Nova Serrana e outro de Divinópolis. Todo preço que colocamos nos peixes, os peixeiros passaram a falar que não valia. O peixe desvalorizou muito depois do rompimento”, conta.
Remando contra a corrente, subimos o rio e chegamos às regiões de Pompéu e Curvelo, onde três mulheres da Comunidade de Cachoeira do Choro esboçaram seus pensamentos acerca da experiência de ser mulher atingida.
As três mulheres eram economicamente provedoras da família e dos afazeres da casa, sendo dona de pousada, pescadora profissional e dona de armazém. Elas lamentaram, sobretudo, a perda de autonomia e independência enquanto mulheres, desde que o crime ocorreu.
As três disseram que tiveram que deixar o papel desempenhado de “chefes de família” e agora dependem de outros homens, maridos ou filhos, para o sustento de uma sobrevivência básica.
Elas relataram que se sentem abaladas psicologicamente, e em seus corpos, que aos poucos foram parando de enfeitar e festejar, tendo autoestima e liberdades soterradas.
Refletiram também que sua força não vem apenas do tão designado papel de ser mãe (que já é muita coisa), mas do engajamento coletivo na luta por uma vida e mundos melhores. Estão exaustas, por vezes nostálgicas, mas, em frestas de conversas, lampejam alguns sonhos nas cores de pedaços de chãos, guardados e mostrados, “Toá”, assim nomeia Dona Igara. Com os chãos secos em mãos pensam o que fazer.
“Nós somos guerreiras… somos fortes…”, essas palavras de Carolina Ribeiro, de Felixlândia, nos convida a entender o cenário brasileiro, no qual a força das mulheres é essencial, porém ainda desvalorizada. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o percentual de domicílios brasileiros comandados por mulheres saltou de 25%, em 1995, para 45% em 2018.
Ao longo do rio Paraopeba e da região do Lago de Três Marias, no fluxo das águas, essas histórias se enredam, costurando Marias pescadoras, artesãs, empreendedoras no turismo e lazer, faxineiras, cuidadoras, produtoras de hortas e tantas outras atividades.
Desde que a enxurrada de lama com minérios ameaçou os territórios ao longo dos 26 municípios atingidos, as mulheres contam como sua vida mudou. “Teve diferença na forma como as mulheres sentiram o rompimento. Teve diminuição na casa da gente. Com a pandemia, diminui ainda mais. Deixei de criar galinha. Era uma pequena fonte de renda, mas dava pra comprar remédio pro esposo, pro filho. A minha luta aqui é difícil, é pesada”, conta Dona Luzelina Rodrigues, do Lago dos Cisnes, que recebia hóspedes pescadores em sua casa como mais um complemento na renda e viu o fluxo ir embora depois do rompimento.
Maria de Fátima Santos é pescadora de Três Marias. Ela disse que a saída é coletiva e que, se as mulheres se juntarem, “fica um peixão, nós somos guerreiras. Nós somos formiguinhas, quanto mais formigas juntar melhor”. Elas sabem que são indispensáveis na produção pesqueira.
A exemplo de Dona Neide, Rosineide Pereira de Sá, que aos 61 anos, tece ou remenda as redes que o marido, Zé do Violão, joga no rio. Ela limpa o pescado e, quando é o caso, fileta o peixe, além de organizar o freezer e promover as vendas.
As desigualdades afetam mulheres negras e indígenas de maneira mais severa e é justamente isto que faz com que todas tenham a necessidade, nada romântica, de se reinventarem para buscar sobrevivência. Elas concentravam a maior taxa de desemprego em 2011 (IPEA), sendo a raça um fator agravante. Após 10 anos, das que estavam empregadas antes da pandemia, 41% seguiu trabalhando e das desempregadas, 58% são mulheres negras. Esses dados são da pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pela Sempreviva Organização Feminista (SOF), em 2020.
Contra o desemprego, Silvânia de Souza Silva, de São José do Buriti, encontrava nas festas da região um abrigo. “Meu pai tinha dado uma kombi pra gente poder trabalhar aqui com eventos. Eu fazia pão de mel, bombom. Aí a gente parou. A kombi ficou parada. As pessoas falavam que o rejeito ia chegar aqui, até Três Marias. Falaram que o peixe estava contaminado. A gente parou de pescar”, conta Silvânia.O relato de Silvânia nos lembra que a atividade pesqueira na região sofreu quedas violentas na venda do peixe devido à possibilidade de as águas estarem contaminadas. Atividades indiretas também foram afetadas, como pequenas comercializações em que os principais consumidores advinham da movimentação da pesca.
Luzelinas, Simones, Igaras, Neides, Carolinas, Florindas e Anas, baqueadas e movidas pelas mesmas águas, quase que se confundem ao corpo do rio, com suas águas sujas de chãos, por vezes densas, passam despercebidas aos olhos míopes, talvez pouco interessados e atropelantes, de uma justiça distante, de eleva-dor. Mas seguem movimentando mundos, re-conhecendo suas matérias, seus chãos, seus danos e amiúde seus desejos espiralados com a paisagem. Como água, achando caminhos entre pedras, a reinventar mulheres e mundos possíveis.
Texto: Leidélia Villefort, Lívia Magalhães, Milena Andrade, Morgana Mafra, Raquel Santos e Sarah Fontenelle. Edição e revisão: Fernanda Brescia.
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