“Ser cigano é viver como um passarinho”
Dessa forma, Dalmi Silva, morador do bairro Beira Rio, em Três Marias, define a vida de seu povo, os ciganos Calon, uma das várias etnias existentes atualmente no Brasil. Nesta sexta-feira (24), é celebrado o Dia dos Povos Ciganos, um bom motivo para conhecer mais sobre essa cultura milenar diversa, carregada de história, cores, música, respeito ao meio ambiente, às crianças e aos mais velhos, que compõem a sociedade brasileira. “Vivemos em movimento, nossa casa é o mundo. Nosso lugar é onde estão os nossos pés”, afirma Dalmi Silva.
No Brasil, cerca de 800 mil a um milhão de pessoas se identificam como ciganos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo os mais conhecidos os povos Calon, Rom e Sinti. O Dia dos Povos Ciganos surgiu a partir de um decreto feito em 2006, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em reconhecimento à contribuição desta etnia na formação da identidade cultural brasileira.
Os ciganos e ciganas estão espalhados pelo país, sendo artesãos, operários, músicos, artistas, professores, profissionais liberais, empresários, funcionários públicos e tantas outras profissões, enquanto lutam, há centenas de anos, por representação, inclusão e reconhecimento.
Os primeiros a chegar em terras brasileiras foram os Calon, vindos de Portugal, a partir de políticas de deportação da coroa para suas colônias, em 1574. Mas a origem dos ciganos permanece um mistério, devido aos poucos registros que a expliquem. O cientista social Davi Bellan conta que historicamente existem algumas linhas divergentes a respeito do lugar de onde o povo cigano vem. “As lendas e as evidências sugerem que os ciganos têm origem na Índia, antes do século IX, após a expulsão de uma casta inteira do país. Essa casta seria de músicos e artistas acostumados a oferecer serviços temporários para outras castas. Depois de desentendimentos, ela teria sido expulsa do país”. Segundo o pesquisador, a partir daí teria começado a peregrinação desses povos. “Isso justificaria a semelhança com algumas culturas indianas”, complementa.
Outra linha de análise defende a saída dos ciganos da Índia para fugir dos muçulmanos. Depois de atravessarem a Pérsia e viverem durante séculos no Império Bizantino, foram para o norte no séc. XIV. Sem uma nação para poderem chamar de suas, o destino possível para os povos ciganos foi e é, muitas vezes, de muita vulnerabilidade. “Aprendemos a nos virar, mesmo em lugares onde vivenciamos tantos preconceitos. Isso se tornou uma característica forte nossa, a gente sempre se ajeita, sempre consegue proteger nossos costumes, seja onde nossas barracas estiverem”, afirma Marlene da Rocha, uma das ciganas Calon da comunidade de Beira Rio.
Voltando ao passado, sabe-se que aconteceram distintos conflitos históricos que levaram os ciganos a se espalharem por diferentes regiões da Europa, marcados pela dificuldade de se integrarem socialmente. O preconceito vinha de muitos lados, seja devido ao tom da pele ou por causa das vestimentas ou devido a outros aspectos culturais carregados pelos grupos, como o da adivinhação por meio de cartas ou leitura de mãos. Por muitas vezes a Igreja Católica repudiou os povos ciganos, inclusive com uma perseguição intensa principalmente por meio da inquisição. As formas de violência eram múltiplas: proibição do uso de trajes típicos, do uso do dialeto próprio, de transitar pelos espaços e de exercer os seus ofícios tradicionais ou até mesmo de se casar com pessoas do mesmo grupo étnico.
Em alguns países, como no Brasil, os ciganos chegaram a ser escravizados. Na Romênia, eles só foram libertados em meados do séc. XIX. Eles também eram frequentemente punidos com a deportação. Alguns chegaram à América do Norte como prisioneiros ou servos sobre contrato, pouco após o desembarque dos primeiros colonizadores ingleses em 1620. Foram expulsos da Inglaterra por força de várias leis. Hoje, vivem espalhados pelo mundo, especialmente na Europa, sendo sempre uma minoria étnica nos países onde se fixam. “Já temos registros de ciganos transitando desde o século XII. Eles já passaram pela queda do absolutismo, já passaram pelas guerras mundiais todas, pelos campos de concentração, pelas mudanças de sistemas… E sempre nas margens. Nós sabemos como os sistemas culturais majoritários se comportam com quem vive nas margens”, pontua o cientista social Davi Bellan.
É uma característica comum dos povos ciganos a manutenção do dialeto próprio de cada grupo. Os Calons, por exemplo, falam o chibi. Já os Rom, o romani. “É uma forma da gente se comunicar somente entre nós”, explica Marlene. Já as roupas, outra marca forte entre os povos ciganos, é um dos itens mais valorizados pelas mulheres.
Os vestidos são necessariamente compridos e sempre coloridos. “Gostamos de pedrarias, paetês e paetês. Trocamos de roupa várias vezes em uma mesma festa. Pra gente, o vestido é a própria festa”, explica a cigana. Já os homens, quando estão a caráter, gostam de usar calças jeans, camisa social com cores fortes, cintos de couro com grandes fivelas e botas de bico mais fino. “A gente se veste menos assim do que as mulheres. Já adaptamos nossas roupas ao dia a dia normal, mas temos sempre uma guardada no armário”, diz Dalmi.
A religião dos povos ciganos varia de acordo com cada núcleo familiar. No caso dos Calons, por exemplo, predominam as famílias consideradas católicas e há também um crescimento no número de ciganos evangélicos. Os principais ritos cerimoniais deste grupo são os casamentos e batizados, com festas que duram vários dias, famosas pela animação e fartura.
Existe, na atualidade, uma vasta produção musical própria dos ciganos, um gênero com influência do forró e do sertanejo. Na maioria é composta por batidas simples, poucos acordes e presença de um teclado com sintetizadores. Os cantores e cantoras são ciganos de várias partes do Brasil, como Goiás, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
O rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, chegou até São Gonçalo do Abaeté, a cerca de 300 quilômetros de onde ocorreu o desastre-crime, onde os ribeirinhos que usam o Rio São Francisco também sentiram os danos causados pela mineradora. Em um dos distritos da cidade, chamado Beira Rio, vivem desde 2007 cerca de 40 ciganos da etnia Calon, divididos em sete casas perto do rio. “A gente chegou aqui com as nossas barracas, montamos elas na beirada do rio e ficamos durante uns anos. Tivemos a oportunidade de comprar um lote, mais tarde, e resolvemos permanecer. Pela primeira vez tivemos uma casa própria”, relembra Dalmi.
O povo Cigano Calon, tem uma relação antiga e estreita com o Rio São Francisco e a represa de Três Marias, sobretudo, praticando atividades econômicas e de subsistência, como a pesca e atividades turísticas. Mas, a partir do rompimento da Barragem da Vale em Brumadinho, eles também tiveram suas atividades interrompidas, o que causou impactos negativos sobre o seu modo de vida. As dificuldades financeiras, consequentes do desastre-crime, reduziram os recursos financeiros das famílias ciganas, levando-as a se dedicarem a outras atividades menos rentáveis. Os laços sociais tiveram suas continuidades ameaçadas, provocados pelo adiamento ou cancelamento de atividades sociais, como os casamentos, fundamentais para a manutenção dos laços entre as famílias, e, consequentemente, da cultura cigana.
Em 2022, um projeto de lei sugerido pelo senador Paulo Paim (PT-RS) foi aprovado pelo Senado para fundar o Estatuto dos Ciganos (PL 1387/22).A iniciativa contou com participação da Associação Nacional das Etnias Ciganas (Anec) e busca especificar direitos básicos a essas comunidades. O estatuto assegura atendimento de urgência e emergência nos serviços do Sistema Único de Saúde ao cigano que não for civilmente identificado e também torna obrigatória a coleta periódica de informações demográficas sobre os povos ciganos para ajudar na elaboração de políticas públicas, entre outras medidas. A proposta está em análise na Câmara dos Deputados.
Os povos ciganos se incluem no conceito jurídico de povos e comunidades tradicionais que, segundo o Decreto Federal n.º 6.040/207, são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais. Uma das principais características dessas comunidades é o forte vínculo com o território e o meio ambiente, fundamentais “para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovação e práticas geradas e transmitidas pela tradição”.
Entenda o que são os Povos e Comunidades Tradicionais e por que são atingidos
Imagens de João Carvalho/Guaicuy
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