“Estamos indignados com a coragem da Fundação Renova de cortar o auxílio emergencial às vítimas da ruptura da barragem em Mariana em meio à pandemia causada pelo vírus covid-19”, afirmou Jeanine Oliveira, integrante do Gabinete de Crise da Sociedade Civil. Ela se refere ao anúncio de suspensão do pagamento do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), a partir do 01 agosto de 2020, que foi estabelecido devido ao colapso da barragem de rejeitos de Fundão pertencente à empresa Samarco – controlada através de um empreendimento conjunto das mineradoras Vale e da anglo-australiana BHP Billiton.
O maior desastre ambiental do Brasil causado pela negligência em série das empresas responsáveis, ceifou de imediato 19 vidas e destruiu territórios, impedindo a reprodução das estratégias e os modos de vida de milhares de pessoas ao longo do vale do rio Doce. As pessoas que serão afetadas pelos cortes dos pagamentos do AFE, composto de um salário mínimo, acrescido de 20% para cada dependente e mais o valor de uma cesta básica, são principalmente pescadores que perderam, quando não a totalidade, parte significativa da renda proveniente do rio Doce.
No dia 29 de junho, no início desta semana, diversos atingidos, principalmente os pescadores e pescadoras, foram surpreendidas com o comunicado sobre a suspensão do AFE por meio de canais de comunicação da Fundação Renova (plataforma digital e central de atendimento telefônico). A Fundação Renova, instituição responsável pelas políticas de reparação, incluindo os pagamentos de auxílios emergenciais e de indenização, alega, através de carta nominal que: “após reavaliação dos requisitos necessários para recebimento do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE)” o destinatário que reside na calha do rio Doce e estava recebendo o AFE até o momento “não preenche os requisitos necessários estabelecidos no TTAC para recebimento de AFE”.
No entanto, a Renova não menciona quais são os requisitos que o excluirá do programa em destaque. Nesse sentido, torna-se relevante destacar que a decisão pela suspensão é unilateral, não sendo, portanto, compartilhada, elucidada, discutida e deliberada entre os membros do Comitê Interfederativo (CIF), bem como da Câmaras Técnicas (CT-OS e CT-Saúde), que compõem o sistema de governança estabelecido legalmente através do TTAC.
Ademais, a cessação do AFE pelos motivos gerais alegados pela Fundação Renova de que “não há impedimento para o exercício da pesca comercial na porção capixaba da calha do rio Doce, uma vez que não há proibição legal de pesca nessas regiões. Assim, não há causa para interrupção dessas atividades” contraria ao conjunto de laudos técnicos produzidos pelos peritos do Ministério Público, a saber: LACTEC, Ramboll e FGV; a Nota Técnica 08/2019 da Anvisa e pela Rede Rio Doce Mar, que alertam para o risco de contaminação do pescado.
A situação que causa espanto e indignação aponta ainda para ações protagonizadas pela Fundação Renova voltadas para enfraquecer ou mesmo deslegitimar o sistema de governança ora criado. O comunicado de cessação de pagamento do AFE, soma-se, portando, à judicialização de questões referentes ao encerramento do “Programa de Levantamento e Cadastro dos Impactados” e a rediscussão do impacto no litoral capixaba. Tais ações protagonizadas pela Fundação Renova desde o final do ano passado adensam os problemas que afligem os atingidos e atingidas neste período de isolamento social necessário para conter a propagação da covid-19.
“O anúncio da suspensão feito pelo portal da Fundação, em meio a atual crise sanitária vivida pelo país, configura tratamento vil e desumano da Renova para com as vítimas que, mesmo vivendo cinco anos de desastre, não conseguiram receber uma parcela mínima da reparação”, disse a professora Andréa Zhouri, coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta) da UFMG.
Os pesquisadores do Gesta, que desde o início acompanham a situação das vítimas do desastre, observam que o fato de que a pesca não ser proibida na calha do rio Doce não significa que o ecossistema que sustentava estes pescadores foi recuperado. “A Renova constrói critérios abstratos sobre a ‘eligibilidade’ das vítimas, aparentemente sob o pressuposto de que eles teriam intenções de se aproveitar da situação. Criaram um verdadeiro sistema perito de deslegitimação das demandas justamente em relação aos sujeitos mais fragilizados em meio ao universo dos atingidos”, disse Klemens Laschefski, que também integra o Gesta.
Ao contrário dos objetivos previstos no Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC), a Fundação Renova se ocupa em responder aos interesses financeiros das empresas rés (Samarco, Vale e BHP Billiton), eximindo-as de sua responsabilidade em restabelecer as condições ambientais e restaurar os meios de vida das comunidades afetadas. Cabe ressaltar que não há laudos técnicos consistentes que atestem a recuperação da ictiofauna – conjunto das espécies de peixes que existem numa determinada região biogeográfica – e das condições ecológicas necessárias à sustentabilidade da pesca, bem como a segurança do consumo deste pescado.
As cláusulas 117 e 118 do TTAC exigem “a recomposição das áreas produtivas e das condições para produção dos pescadores, incluindo os equipamentos e infraestrutura impactados para a conservação, industrialização e comercialização do pescado”. Nesse sentido, a finalização do AFE está condicionada ao restabelecimento de toda a cadeia produtiva da pesca, desde a confecção de materiais para a captura do pescado até sua destinação ao consumidor final, o que inclui a segurança quanto às condições de trabalho e a confiança dos clientes em relação ao produto ofertado.
A sociedade espera que as instituições ajam de forma a reverter com celeridade essa injustiça e que tomem medidas inequívocas para que as ações reparadoras sejam efetivamente colocadas em prática pela Fundação Renova, possibilitando aos atingidos e atingidas a possibilidade de retomarem suas vidas de forma autônoma”.
Gabinete de Crise – Sociedade Civil
Belo Horizonte, 6 de julho de 2020.
O que você achou deste conteúdo?