O juiz Murilo Silvio de Abreu, responsável pelo caso do desastre-crime da Vale, publicou nova decisão na terça-feira (19) sobre as indenizações individuais das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem. O juiz faz avançar o processo de resolução (liquidação) coletiva das indenizações, nomeando a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) como perita técnico para definir os danos e seus valores e, sinaliza que na atividade de perícia já deve ser desenvolvida uma plataforma eletrônica que, posteriormente, possa ser usada para que as pessoas atingidas solicitem suas indenizações.
O juiz ainda nomeia as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) como assistentes técnicas das Instituições de Justiça (IJs) no processo e determina que a Vale custeie as atividades com outros valores que não os previstos no Acordo Judicial de Reparação.1 A decisão judicial também reforça a inversão do ônus da prova (ou seja, que a Vale será responsável por comprovar todas as refutações que fizer às afirmações das IJs, da UFMG e das ATIs que estejam baseadas em relatórios técnicos ou na experiência comum de observação do território).
Ana Clara Amaral, advogada do Instituto Guaicuy, considera que a decisão demonstrou, de forma minuciosa e didática, a diferença entre as perícias que estão em andamento e a liquidação que se inaugura, enfrentando a ideia apresentada pela Vale de que a liquidação coletiva seria desnecessária ou inadequada.
“Pelo contrário, o juiz destaca que as perícias já existentes não dão conta de uma Matriz de Danos. Elas auxiliam e serão consideradas na fase de levantamento de dados, mas não estão sistematizadas sob o enfoque da responsabilidade civil. Isso significa que elas não tratam do aspecto jurídico dos danos, e, portanto, não são suficientes para facilitar o acesso à justiça”, comenta.
Para a advogada da ATI, as fases da liquidação apontadas pelo juiz “são justamente as fases que garantem a utilidade de todo esse esforço de perícias para a finalidade do acesso à justiça, especificamente no aspecto da indenização individual das pessoas atingidas”.
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O juiz determina o início da liquidação (resolução) da sentença. Ele considera procedente o pedido de reparação dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos individualmente pelas pessoas atingidas e busca fixar todos os critérios da obrigação de reparação dos danos.
São apontadas as seguintes fases da liquidação:
a) a coleta e a organização de dados (situação de fato); b) análise desses dados sob o enfoque da responsabilidade civil; c) a sistematização das definições judiciais acerca dos elementos da responsabilidade civil; e d) criação de uma plataforma eletrônica que possibilite aos atingidos o requerimento de pagamento da indenização de forma simplificada.
Murilo Silvio de Abreu reforça o entendimento de que o Ministério Público pode agir na resolução coletiva, contradizendo o argumento da Vale.
A decisão judicial justifica que a resolução seja coletiva, e não individual, como deseja a mineradora. Para o juiz, “a extensão e complexidade dos efeitos negativos da catástrofe ambiental justificou e justifica o tratamento coletivo dos direitos individuais homogêneos dela decorrentes”.
Também é dito que a resolução coletiva possibilita que os direitos individuais sejam “concretizados de modo efetivo, em tempo razoável e sem sobrecarregar, desnecessariamente, o Poder Judiciário com uma avalanche de ações individuais de liquidação de sentença”.
Ainda aponta que a resolução coletiva por meio de Ação Civil Pública não proíbe e nem dificulta as negociações extrajudiciais, apenas reconhece as dificuldades de cada pessoa atingida acessar seus direitos individualmente na justiça.
O juiz considera ser impossível resolver a questão das indenizações sem estabelecer uma “uma fórmula a ser aplicada para determinar o valor devido” para cada pessoa atingida, chamando essa fórmula de Matriz de Danos.
A decisão afirma que o juiz “pretende fixar uma matriz de danos construída com a participação das partes e com a atuação de um perito judicial, que garantirá a necessária imparcialidade para a formação justa e adequada de um sistema eletrônico capaz de resolver as pretensões individuais de forma simplificada e célere”.
Murilo Silvio de Abreu não concorda com os argumentos apresentados pela Vale de que as perícias do Comitê Técnico Científico da UFMG (CTC/UFMG) já em curso bastam para resolver as indenizações individuais. “A pesquisa em andamento não é capaz de compor, adequadamente, a demanda dos atingidos pela reparação dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes do desastre ambiental”, afirma.
“Justamente porque os pedidos iniciais relacionados aos danos individuais e individuais homogêneos não foram objeto do Acordo é que ele previu, expressamente, o prosseguimento das pesquisas desenvolvidas pelo perito judicial que se relacionam com tais danos. O acordo não dispõe que a perícia relativa aos direitos individuais e individuais homogêneos está limitada aos Subprojetos previstos no item 2, do seu Anexo XI”, completa.
De acordo com a decisão judicial, a perícia tem como objetivo definir quem tem direito à indenização, quais são os danos que devem ser indenizados, quais os critérios e meios de comprovação e qual o valor de cada uma das indenizações. Os elementos citados formam, na opinião do juiz, a Matriz de Danos.
Tal construção deverá ter como base informações técnicas e imparciais, “possibilitando a construção de um sistema que contenha todos os parâmetros da indenização e que esses parâmetros sejam fundados, na medida do possível, em elementos objetivos e técnicos”.
O juiz propõe a criação de uma plataforma eletrônica para a última fase da liquidação, na qual caberá a cada pessoa atingida acessar o sistema, fornecer os dados e documentos necessários e pleitear o pagamento da indenização conforme a Matriz de Danos. Assim, a liquidação forneceria todos os meios necessários para a execução, que é de iniciativa individual.
Murilo Silvio de Abreu determinou que as ATIs serão assistentes técnicas das IJs no processo de resolução coletiva das indenizações individuais. Caberá à Vale o custeio do trabalho e os valores não serão descontados do Acordo Judicial de Reparação, já que nele não são resolvidas as questões de danos individuais. O juiz concede prazo, após a definição da metodologia da liquidação, para as ATIs apresentarem planos de trabalhos específicos.
O juiz nomeia a UFMG como perita, determina a realização de audiência entre as partes para discussão sobre a metodologia da liquidação coletiva e dá prazo, após a definição, para que as ATIs apresentem planos de trabalho para atuação no tema.
Murilo Silvio de Abreu reforça o entendimento da necessidade da inversão do ônus da prova. Ele considera “mais uma medida que observa o princípio da efetividade, diante da evidente superioridade técnica e econômica da Vale S/A”.
A decisão afirma que a inversão do ônus da prova já tem que ser definida logo no início da liquidação, porque, além de ser evidente a sua necessidade pela questão da superioridade técnica e econômica, ela já deve permear toda a discussão metodológica inicial, tendo como “premissa a facilitação dos meios de prova dos danos e da condição de atingido/credor da indenização. Isso é necessário para que a construção conjunta da matriz de dano seja efetiva e célere”.
Por fim, o juiz negou o pedido de duas entidades para serem Amicus Curiae no processo (amigo da corte, em latim). Ser Amicus Curiae significa ter o direito de fornecer subsídios às decisões judiciais em questões relevantes e de grande impacto. Foram negados os pedidos da Associação dos Atingidos pela Barragem de Brumadinho (ABB) e da Comissão De Atingidos de Três Marias.
Segundo o juiz, a “participação no feito é desnecessária, uma vez que já há atuação na demanda das Instituições de Justiça, que contam com as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) para realizar o contato com os atingidos”.
No início da decisão, o juiz apresentou uma série de argumentos usados pela Vale para se posicionar contra a resolução coletiva das indenizações individuais. Importante lembrar que Murilo Silvio de Abreu já havia feito avançar a resolução coletiva em 15 de março. No entanto, após recurso da mineradora, em 6 de setembro, o juiz voltou atrás e suspendeu sua própria decisão por considerar que a empresa ré não tinha sido ouvida sobre a proposta inicialmente apresentada pelas Instituições de Justiça (IJs).
A Vale foi, então, intimada a se manifestar sobre a resolução coletiva das indenizações individuais. A mineradora se disse contra a instauração de uma perícia imparcial que determine quais os danos, quem deve ser indenizado, as formas e critérios de comprovação, além da valoração das indenizações. Isso porque, segundo a empresa ré, a UFMG já cumpre o papel no processo, como definido no Acordo, e tal discussão só pode ser feita após o término das perícias em andamento.
A mineradora também ressalta que há um Termo de Compromisso firmado entre ela e a Defensoria Pública que pode ser usado na discussão das indenizações. Outro ponto apontado pela mineradora é sobre a impossibilidade de resolver de forma coletiva as indenizações que são individuais. Por fim, também se manifesta contra a inversão do ônus da prova (a Vale é contra que seja responsabilidade da empresa provar que não atingiu as pessoas, e não o inverso).
Após recurso da Vale, a Defensoria Pública mudou sua posição e se manifestou de forma contrária na segunda instância. Em seguida, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) se manifestou pela defesa da solução coletiva e foi acompanhado pela Procuradoria Geral de Justiça (PGJ).
A Vale tem um prazo de 15 dias úteis para se manifestar após intimação. É importante considerar que não são considerados dias úteis o período de recesso forense (de 20 de dezembro de 2023 a 20 de janeiro de 2024).
Independentemente de eventual recurso judicial da Vale, é fundamental que as pessoas atingidas exerçam protagonismo na construção da resolução coletiva, como ocorre na construção dos planos de trabalho da perícia e dos assistentes técnicos, conforme decidido pelo juiz Murilo.
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