No dia 4 de junho, a Vale se manifestou novamente contra a resolução coletiva das indenizações individuais. No documento, além de reafirmar que já indenizou “a maioria” das pessoas atingidas pelo desastre-crime de 2019, a Vale deixa claro que não planeja indenizar as pessoas atingidas da Região 5, composta pelos municípios de Felixlândia, Três Marias, São Gonçalo do Abaeté, Morada Nova de Minas, Biquinhas, Paineiras, Abaeté e Martinho Campos, localizados às margens da represa de Três Marias e do Rio São Francisco.
A mineradora justifica a exclusão dos municípios com a delimitação realizada em 2020 pela perícia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conforme orientações do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), que indicava a possível contaminação da água somente até a represa de Retiro Baixo, em Pompéu. Segundo o documento, os municípios da Região 5 “não foram impactados pelo evento tal como os demais, não havendo que se falar, portanto, em ampliar as pesquisas para aquela população, que não sofreu danos individuais”. A manifestação exclui também a cidade de Caetanópolis, localizada na Região 3.
Essas afirmações contrastam com a mudança drástica que o rompimento da barragem em Brumadinho, mesmo a 300 km de distância, causou na realidade das pessoas que habitam as comunidades em torno da represa de Três Marias, especialmente aquelas ligadas à pesca e ao turismo, onde pescadoras e pescadores, pilotos, fileteiras, donas e donos de pousadas e outros profissionais tiveram prejuízos como perda de estoque e inutilização de maquinário, que levaram muitas pessoas ao endividamento. A Região 5 também não teve acesso às medidas emergenciais, mesmo persistindo a insegurança em relação à qualidade da água em algumas dessas comunidades.
A manifestação da Vale ainda menciona supostos “impactos positivos resultantes das ações de reparação” realizadas pela mineradora. Em contraste, o serviço de acolhimento em Saúde e Assistência Social do Guaicuy, realizado pela equipe da Assessoria Técnica Independente nas comunidades atingidas entre 2021 e 2023, registrou relatos de adoecimento mental ou agravamento de condições pré-existentes, e uma série de problemas dermatológicos e gastrointestinais relacionados ao contato com a água da represa. Centenas de pessoas também relataram maiores gastos com medicamentos e piora na alimentação cotidiana – tanto pela falta de dinheiro quanto pela impossibilidade de produzir o próprio alimento (por insegurança ou insuficiência de água para irrigar hortas, por exemplo).
O banco de dados com as pesquisas realizadas pelo Instituto Guaicuy, lançado em janeiro, estão disponíveis aqui.
A Vale alega ainda que “os impactos socioeconômicos e socioambientais abrangentes estão devidamente abarcados pelo Acordo Judicial e seus projetos e programas”. No entanto, é a dimensão individual desses impactos socioeconômicos que são discutidas na indenização, e que não foi abarcada pelo Acordo. Cabe lembrar que os critérios de participação nos programas do Acordo, em especial o Programa de Transferência de Renda (PTR), deixaram de fora muitas pessoas atingidas que, além da perda de trabalho e renda, lutam pela manutenção de seus modos de vida, a exemplo das comunidades pesqueiras às beiras do Rio São Francisco.
Ao saber da possibilidade de negação do direito à indenização para a Região 5, Ivane Ribeiro, representante da Comissão Sede Morada Nova e Entornos e do coletivo Sentinelas, relembra que tinha uma piscicultura pequena e estava começando a vender peixe quando estourou a barragem. “Ninguém mais quis comprar o peixe, porque a mídia dizia que a água estava contaminada. Eu e meu marido, que somos pescadores artesanais, tivemos que sair do nosso cantinho e voltar para Sete Lagoas. Tive que vender os peixes baratinhos, vender as gaiolas todas. Eu voltei a ser costureira, e ele, motorista. A gente ainda pesca, mas só consegue vender para os conhecidos”, disse.
Além do prejuízo financeiro e mudança de vida imposta pelo crime-desastre, Ivane também relata problemas de saúde. “Eu peguei um fungo na represa, fui no médico e fiquei proibida de pisar na água. Eu, que sou pescadora! Mandei as fotos para o Guaicuy, para o Ministério Público, para a Dra. Shirley [promotora]. Meu pé ficou todo manchado e o tratamento foi muito caro. Os homens que ficam mais na água têm furúnculos, tipo uma catapora, umas bolas cheias de pus na pele. Se a Vale não sabe disso, temos que levar ao conhecimento dela. Mas é lógico que ela sabe”, critica.
Na margem oposta da represa, Leonardo Moreira de Souza, proprietário de um terreno no Condomínio Náutico Tucunaré, em Felixlândia, conta que adquiriu a área em 2017 para construir uma casa para a família, mas, após o rompimento da barragem, teve que frear os planos. “A gente ouve a Vale falar que a água parou no Retiro Baixo, na barragem. A lama pode ter parado, mas a água passou, continua passando, com contaminação, com doenças. Se a Vale tivesse alguma competência para falar de barragem, não teria acontecido o que aconteceu em Mariana e Brumadinho, né?”, diz Leonardo, que segue acompanhando o processo com esperança de responsabilização da Vale pelo crime-desastre.
Imagem: Daniela Paoliello/Guaicuy.
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