A primavera e o verão, para quem pesca, são tempos para se estar mais fora do que dentro da Represa de Três Marias. É hora da Piracema, o período de reprodução dos peixes. A temporada de quatro meses, em Minas Gerais, tem início no dia 1º de novembro e estabelece a suspensão da pesca, por ser um momento sensível para esses animais. Já a pausa no ofício, para os profissionais da área, significa um período de espera, paciência e consciência, mas também de organização e trabalhos que vão além do manejo de redes e anzóis. “Se é tempo de recolher a pesca, a gente espera, né? Mas, aqui, a gente espera plantando”, afirma Lázaro Antônio Rodrigues, 68 anos, pescador de Ilha/ Indaiá de Baixo.
A palavra Piracema vem do tupi: “pira” significa “peixe” e “cema”, “subida”. Ela descreve o fenômeno que acontece com milhares de espécies do mundo inteiro quando elas precisam se reproduzir. Nesse movimento, os peixes vão contra a correnteza, subindo o rio em cardumes rumo a um lugar propício para a desova e alimentação, seguindo assim seus ciclos de vida. Para isso, enfrentam obstáculos naturais, como cachoeiras e também os criados pelo ser humano, como as hidroelétricas.
Durante a Piracema, os pescadores e pescadoras têm direito a um auxílio que funciona como um seguro-desemprego especial, pago como contrapartida por ter de parar suas atividades nos períodos de defeso. Ele se chama Seguro Defeso. “Recebemos um salário mínimo. Em um mês de pesca normal eu consigo tirar até três salários mínimos, bruto. Então acaba que a gente precisa se preparar um pouco pra esses meses com menos dinheiro, fazer um pé de meia e contar com o que se planta na roça. Mas dá tudo certo”, explica Lázaro.
A temporada de procriação dos peixes ocorre em períodos chuvosos e, como o Brasil é extenso, não acontece no mesmo momento em todo o país. Em Goiás e Tocantins, por exemplo, ela ocorre de novembro a fevereiro. Já no Rio Grande do Sul e Santa Catarina de outubro a janeiro. Em Roraima, vai de março a junho. De sua casa em Indaiá de Baixo, Lázaro aproveita a chuva para cultivar em sua roça os alimentos que dão certo com a abundância de água: milho, abóbora, melancia, quiabo e feijão. Todo ano, o que brota ajuda a complementar a alimentação da família de nove filhos, 16 netos e nove bisnetos. “Já teve época de ter quase trinta refeições diárias aqui na minha casa. Almoço e janta. Nesses tempos apertava um pouco, mas hoje já está tudo crescido, então fica mais tranquilo”, conta. Lázaro explica que, mesmo no período de pesca suspensa, os profissionais ainda podem pescar 3,5 quilos de peixe para consumo próprio. “O resto a gente dá um jeito com o que a terra entrega, não é?”, explica. “Tem que plantar o que dá certo com a água, com a tempestade. Os peixes nascem no embalo dos trovões. Eles precisam da correnteza para chegarem no lugar certo, para poderem se multiplicar. Eles são a nossa fartura. Por isso, celebramos a chuva e o que gosta de brotar no seu exagero”, complementa.
Marta Vicentina, 49 anos, moradora da comunidade de Frei Orlando (conhecida como Junco), é viciada em pescaria, como ela mesma se define. Para lançar as redes na represa, não há preguiça. A prova disso é a frequência de seu trabalho: “Aprendi a pescar com meu ex-marido e hoje eu devo ir pra água uns 28 dias no mês. Só não vou quando preciso resolver alguma coisa ou fico doente”. O período da Piracema é difícil para ela, que sente muita saudade de imergir na represa. “Se fico muito tempo longe, me dá um aperto no peito. A represa fica me chamando, sabe? Acostumei a estar ali dentro, com meus peixes”, desabafa.
Mesmo assim, Marta confessa que quando a temporada de reprodução dos peixes se aproxima, ela normalmente já está se sentindo cansada, precisando de uma pausa para recomeçar em tempos de fartura. “Gosto de tirar uns dias, descansar, e depois já começar a reformar minhas redes para quando puder voltar pra represa”, conta.
Para Marta, o mais difícil da Piracema, além da distância do barco, é a sobrevivência com o Seguro Defeso que, segundo ela, é muito inferior ao valor que conseguem tirar por mês por meio do pescado. “Somos proibidos de pescar e também de ter outras fontes formais de renda. Então isso nos dificulta muito a vida, porque ganhamos nesse período praticamente um quarto do que ganhamos com nosso trabalho. Eu entendo a necessidade dessa pausa, isso é indiscutível, porque a natureza precisa desse tempo. Mas, muitas vezes, até mesmo o pouco que recebemos de auxílio demora meses pra chegar pra gente, fazendo com que sejamos obrigadas a nos virar para não passar fome. Pescador que é pescador não quer viver com muito dinheiro, sabe? Mas quer dignidade”, defende.
Os pescadores e pescadoras atingidos pela Vale com o desastre-crime de Brumadinho que vivem nos municípios do entorno da Represa de Três Marias lidam diariamente com inúmeras consequências e impactos do rompimento, como danos na geração de renda e alterações nos modos de vida. Mesmo considerados como pessoas atingidas pela mineradora no Acordo de Reparação, firmado em 2021 pelo Poder Público e pela Vale, muitos deles ainda lutam pelo direito de receberem o Programa de Transferência de Renda (PTR) por conta de dificuldades de comprovação de residência dentro dos limites exigidos pelos critérios do programa.
A reforma das redes é função de todo profissional da área no período da Piracema. Depois de tantos meses usando o material para os trabalhos diários, muitas já estão rasgadas, precisando de serem refeitas. “Temos que costurar, como se fosse uma roupa furada, pra poder ficar mais firme na correnteza” explica Silvana Gomes 44 anos, pescadora há 22 anos na comunidade de Paraíso, no município de Felixlândia. Ela também aproveita esse tempo para ajudar outros pescadores a recuperarem seus materiais, um trabalho que leva tempo e deve ser feito com paciência. “Tem uns que não sabem, então a gente ajeita os nossos e o dos outros, pra ficar tudo pronto pro recomeço”, conta Silvana.
Para Silvana, os pescadores e pescadoras são os olhos que melhor enxergam os rios e mares, sem fazer parte deles. “A gente está perto, então conseguimos saber e sentir quando não tem algo andando bem. Nesses últimos tempos, por exemplo, a água está muito baixa, a chuva não veio como esperado”, afirma. Já Lázaro reparou outra questão. “Os peixes começaram a desovar mais cedo esse ano. Em setembro, outubro, a gente já pegava peixe cheinho de ovas”. Marta disse algo parecido. Para ela, a temperatura da represa mudou, a reprodução antecipou e tudo isso sinaliza para algo que não pode ser ignorado. “Eu sei que existem leis que definem as coisas, mas também acho que a gente deveria ser ouvido, pois ninguém conhece essas águas melhor do que nós”, avalia.
Entre as conversas sobre a pescaria, Silvana, então, relembra o último dia de pesca deste ano, quando, depois de uma temporada ruim de peixe, de repente uma surpresa: havia uma multidão deles nas redes, como há muito tempo não acontecia. “A natureza está cheia de presentes, já já a gente volta pro barco”, completa.
Crédito da imagem: Instituto Guaicuy/ Gia Dias
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