“Sou pescadora e passei por tudo isso: discriminação, hoje tenho depressão, sofri muito tipo de coisa, até uma separação. Começaram as brigas, medo de passar fome e foi muito difícil. Então isso aí bate certinho com o que aconteceu não só comigo, mas com muitos outros pescadores.” Esse foi o retorno de uma pescadora após a apresentação realizada pelo Guaicuy sobre os resultados da Pesquisa de Agravamento de Danos das Especificidades (PADES) relativa ao atingimento específico sofrido por pescadores e pescadoras das Regiões 4 (Curvelo e Pompéu) e 5 (Abaeté, Biquinhas, Felixlândia, Martinho Campos, Morada Nova de Minas, Paineiras, São Gonçalo do Abaeté e Três Marias) após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 2019.
Leia mais sobre agravamento de danos
A reunião de apresentação da PADES aconteceu na sexta-feira (8/11) e contou com a participação 98 pessoas atingidas que pescam de forma artesanal. O encontro aconteceu no formato híbrido — além de transmissão online, havia cinco pontos de apoio presenciais nas Regiões 4 e 5.
Para a supervisora do Guaicuy Taís Sousa, o número expressivo de participantes mostra como essas pessoas estão ávidas para serem ouvidas e terem seus direitos reconhecidos. “Elas reconhecem os seus agravamentos e especificidades e querem que os outros também reconheçam também seus danos, suas vivências e suas violações sofridas ao longo desses quase seis anos de rompimento”, enfatiza.
A pesquisa foi produzida a partir da discussão em seis grupos focais compostos por pescadores e pescadoras, que aconteceram em setembro e outubro de 2022 e em fevereiro de 2023. Grupos focais são pequenos grupos de pessoas que se reúnem para debater um tema específico, com a condução de um mediador.
A partir da análise dos dados coletados nos grupos, os danos foram divididos em quatro tipologias:
Danos que afetaram todos os pescadores e pescadoras, mesmo que não sejam vivenciados apenas por essa categoria. Exemplos: interrupção da pesca e da comercialização do pescado; perda total ou parcial da renda; perda de soberania e segurança alimentar e hídrica.
Danos que são mais graves entre pescadores e pescadoras do que entre as pessoas que não pescam: Exemplos: perda e diminuição da renda; danos à sobrevivência e ao projeto de vida; restrições das possibilidades de trabalho.
Danos que geraram consequências diferentes para pescadores e pescadoras: Exemplos: insegurança quanto a qualidade da água e do pescado; endividamento; danos à saúde física e psicossocial.
Danos que acontecem com base em processo de discriminação. Exemplos: discriminação em situações de compra e solicitação de crédito; estigmatização da imagem do peixe e da identidade do sujeito social pescador/a; honra e processo da reparação (dificuldade do reconhecimento da Região 5 como território atingido).
O encontro de apresentação da PADES começou com uma retomada sobre o que é a pesquisa e como ela foi construída, com a explicação da metodologia para a elaboração do trabalho. Parte das pessoas que compareceu à reunião esteve nos grupos focais, mas vários participantes não tiveram envolvimento ativo no processo dessa pesquisa, especificamente. Por isso, a retrospectiva foi muito importante. Em seguida, foram explicadas as tipologias de danos com agravamentos levantadas no trabalho.
Além da apresentação de resultados, o encontro teve como objetivo a validação dos agravamentos de danos identificados com os pescadores e as pescadoras presentes. Foram realizados dois blocos de discussão, com duas tipologias de agravamentos em cada, para a realização dessa validação. Os blocos eram iniciados com uma narrativa ficcional produzida com base em falas de participantes dos grupos focais e, posteriormente, as pessoas poderiam dizer se se sentiam representadas pelas situações retratadas nas histórias e se concordavam ou discordavam com os danos sofridos. Com isso, foi possível fazer acréscimos e ajustes no levantamento da pesquisa.
Após a narrativa de um dos blocos de discussão, outra pescadora relatou: “Eu me identifico muito com a história desse casal [da ficção apresentada]. Eu sou pescadora de barranco. Eu, meu filhos, meu marido… Antes de 2019, a gente ia para o rio e trazia sacos de peixe, muito peixe. A gente vendia e era a nossa sobrevivência. Aí depois do rompimento, a história minha é a mesma do casal. Depois do rompimento acabou tudo, sabe? Hoje a gente não pesca mais. Eu mesma não como mais peixe. E eu fico triste, porque tem pessoas que ainda pescam e comem, e esse peixe vai trazer doença, vai trazer muita coisa”.
Este é um momento muito oportuno para validação dos danos identificados e a divulgação dos estudos da PADES. Isso porque os resultados da pesquisa podem servir como base para desdobramentos que têm acontecido no processo de reparação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem.
Um desses aspectos é a recente aprovação, pelas Instituições de Justiça, da Proposta Definitiva da Entidade Gestora do Anexo 1.1, que faz parte do Acordo Judicial de Reparação, assinado em fevereiro de 2021. Esse Anexo destina R$3 bilhões para projetos de demandas das comunidades e para linhas de crédito e microcrédito. Como há possibilidade de existirem linhas de crédito específicas para pescadores e pescadoras tradicionais, a documentação dos danos pode ser um auxílio.
Outro ponto em que o registro dos danos específicos sofridos pode ter função relevante é no processo de resolução (liquidação) coletiva dos danos individuais. Essa proposta busca definir parâmetros para valoração dos tipos de danos que valham para todas as pessoas atingidas que serão indenizadas pelo rompimento da barragem.
Taís destaca que a reunião foi muito importante para demonstrar que mesmo o estudo tendo sido realizado em 2022 e 2023, ele ainda se mantém atual e muito espelhado nas vivências dessa população e pode ser uma ferramenta útil no processo de reparação. “Também foi muito boa a resposta dos pescadores e pescadoras sobre essa pesquisa, a validação real deles sobre esse estudo”, acrescenta.
Além do estudo com esse público, o Guaicuy também realizou a PADES com outros grupos específicos, sendo eles mulheres, população negra e população idosa. Ao longo dos próximos meses, serão realizadas as reuniões de apresentação e validação dos danos relativos aos grupos restantes.
Imagem destacada: Acervo Guaicuy
O que você achou deste conteúdo?