O presidente Lula sancionou no final de 2023 a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), uma grande conquista para pessoas atingidas por barragens — hidrelétricas, mineradoras, ou de outras naturezas — no Brasil. Entre outros avanços, a legislação é importante para unificar os direitos de comunidades em todo o país ao definir o conceito de atingimento, estabelecer deveres para as empresas causadoras dos danos, apontar diretrizes para a reparação e estruturar ferramentas de participação popular em todo o processo.
A luta por uma política pautada em direitos das pessoas atingidas começa antes mesmo dos desastres-crimes da Samarco (Mariana, 2015) e da Vale (Brumadinho, 2019). Ela surge anos antes destes acontecimentos, em função dos diversos prejuízos socioambientais causados por barragens do setor hidrelétrico, como o alagamento de grandes áreas e o deslocamento forçado de populações.
“É uma história longa, de muitos enfrentamentos e muitos boicotes, com uma oposição ferrenha das empresas principalmente do setor elétrico brasileiro, o que inclui empresas da transmissão e geração e empresas mineradoras, que além de gastar muita energia são donas de hidrelétricas, como a própria Vale. Todo esse setor fez uma grande oposição”, contextualiza Thiago Alves, da coordenação nacional do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB).
O debate chegou à Câmara dos Deputados em 2015, com base em uma cartilha do MAB de 2013 e o Projeto de Lei 2788/2019 foi estruturado por um grupo de deputados mineiros em maio de 2019, após o rompimento da Vale em Brumadinho. Posteriormente, foi aprovado em caráter de urgência, em um contexto de muita pressão social por conta do desastre-crime. Após longa tramitação no Senado, também foi aprovado pela casa, com o texto original, em novembro de 2023.
As disposições da PNAB aplicam-se às barragens enquadradas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), mas também em casos não contemplados por ela em que a construção, operação ou desativação tenha atingido populações.
Além disso, a PNAB considera todo o procedimento de licenciamento ambiental, portanto pode ser aplicada antes mesmo da construção da estrutura. Ela também vale para situações de emergência em função de vazamentos ou rompimento da estrutura, tanto nos casos em que eles já tenham acontecido, como quando é identificada a iminência de risco.
A Política Nacional de Segurança de Barragens se aplica a barragens destinadas à acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos industriais que apresentem pelo menos uma das seguintes características:
Ana Clara Costa, advogada do Instituto Guaicuy, destaca que o texto da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas utiliza o termo Populações Atingidas por Barragens (PAB), ao invés de pessoa atingida. “Esse movimento pode ser interessante no sentido de abrir espaço para comprovações a partir do pertencimento a um grupo e apontar para resoluções coletivas”, avalia.
A PNAB entende como população atingida todos aqueles que passam por um, ou mais, dos seguintes impactos provocados pela construção, operação, desativação ou rompimento de barragens:
Para Ana Clara Amaral, outro ponto positivo no entendimento da PNAB sobre quem seriam as populações atingidas está na equiparação expressa de meeiros — quem planta em terreno de outra pessoa — e posseiros — que ocupam um pedaço de terra para subsistência — aos proprietários legais: “Em interpretação sistemática, isso pode sustentar o direito à reparação de forma mais ampla, inclusive a aspectos não diretamente relacionados à produção”, explica a advogada.
Os direitos deverão ser tratados no Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens que será instituído, em cada caso, às custas da empresa causadora dos danos. O programa deve dar atenção especial a mulheres, idosos, crianças, pessoas com deficiência, pessoas em situação de vulnerabilidade, populações indígenas, comunidades tradicionais, trabalhadores da obra, pescadores e comunidades receptoras do reassentamento.
Além disso, a PNAB aponta que a reparação deve reconhecer a diversidade de situações, experiências, vocações e preferências, culturas e especificidades de grupos, comunidades, famílias e indivíduos.
O direito à participação livre, informada e prévia, o direito à Assessoria Técnica Independente (ATI) e o direito à negociação coletiva dos termos da reparação integral são garantidos dentro pela Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens.
Como garantia, a PNAB estabelece ferramentas de participação que refletem diretamente a luta das pessoas atingidas. Um deles é a instituição de um Comitê Local, responsável pelo acompanhamento, fiscalização e avaliação do Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens.
Thiago Alves, do MAB, avalia que, a partir da regulamentação, as pessoas atingidas por diferentes contextos de barramentos e rompimentos terão esse novo instrumento de luta para garantir direitos, mas também para a reparação de eventos anteriores, mesmo que a lei não seja retroativa, ou seja, não se aplique a casos que aconteceram antes da sanção.
“Para os crimes anteriores, nós temos sobretudo uma referência nova de debate para os atingidos. Isso é muito importante, porque até hoje as nossas referências são muito dispersas, construídas na conjuntura de cada contexto e agora nós temos um parâmetro nacional. Também vamos poder questionar com mais segurança os novos danos causados pelos rompimentos que, mesmo cinco ou oito anos depois, a cada dia geram novos danos que podem e devem ser enquadrados no debate político e jurídico a partir da PNAB”, defende.
Antônio Pereira
14 de novembro de 2023
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