A população de Antônio Pereira se soma às comunidades atingidas de Mariana para lutar contra a expansão dos danos da mineração em seus territórios
“A gente está respirando poeira, a gente está bebendo minério!”. Essa fala é de Aliliane de Oliveira Veríssimo, moradora representante da região da Pedreira, Igreja Queimada e Lapa na Comissão de Pessoas Atingidas de Antônio Pereira. A denúncia se incorpora a diversas outras levadas, por representantes das comunidades atingidas pela mineração predatória, até a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), no dia 19 de agosto, durante a audiência pública que debateu os impactos do projeto de expansão territorial da Samarco (Vale e BHP) denominado “Longo Prazo”.
O Projeto Longo Prazo está em fase de licenciamento para a construção de uma imensa pilha de rejeitos em Camargos, distrito de Mariana. Além de outras intervenções que têm potencial de gerar novos e graves danos socioambientais em Santa Rita Durão e Bento Rodrigues (Mariana) e em Antônio Pereira (Ouro Preto), todos distritos que ainda sofrem os impactos do rompimento da Barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015.
Mônica Santos, representante de Bento Rodrigues na Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), destaca que tanto sua comunidade de origem, devastada pelo rejeito de minério, quanto o reassentamento sofrerão severos impactos caso esse empreendimento seja licenciado. A comunidade denominada Novo Bento Rodrigues está em fase final de construção, e algumas famílias já moram nas novas residências. No entanto, apresenta diversos problemas, como o aumento excessivo no custo de vida dos moradores – devido a conversão de uma comunidade semi-urbana em urbana -, a falta dos meios necessários para a retomada dos modos de vida das família atingidas, que passam a viver em terrenos cercados por taludes (barrancos), sem quintais produtivos ou acesso à água bruta para hortas e dessedentação animal, por exemplo. Além de tudo isso, com a aprovação do Projeto Longo Prazo, a Samarco voltaria a vitimar os moradores, que viveriam também os impactos socioambientais do novo empreendimento.
Segundo Mônica, será possível avistar a pilha de cerca de 140 metros de rejeito da Samarco da região central de Mariana. “Não é uma pilha de estéril qualquer, que vai afetar quatro comunidades que já foram atingidas por essa mesma empresa criminosa, vai impactar mais gente!”.
A atingida, que se tornou advogada para defender os direitos humanos violados pela mineração, conclama: “Ainda tá em tempo! Embora o CODEMA, que é um órgão que se diz ambiental, infelizmente já tenha liberado a carta de conformidade, a partir do momento que a licença ainda não foi concedida, tem volta! Grande parte das coisas que acontecem na vida da gente tem volta, menos para a morte!”.
Ana Carla Cota, representante das famílias removidas da Zona de Autossalvamento (ZAS) na Comissão de Pessoas Atingidas de Antônio Pereira fortalece essa visão. “Cada um de nós aqui, atingidos, precisamos fazer essa luta, precisamos resistir! Eu realmente acredito que existe algo para frear e inibir o avanço dessa mineração, nós precisamos acabar com isso. Nós não precisamos desse avanço da Samarco”, afirma ela.
Ronald Guerra, vice-presidente do Instituto Guaicuy e coordenador-geral da Assessoria Técnica Independente (ATI) de Antônio Pereira, ressaltou durante a audiência que o objetivo da ATI é promover a participação informada da população em relação ao processo de reparação dos danos causados pelo risco de rompimento e obras de descaracterização da Barragem Doutor, da Vale. Diante disso, o principal trabalho do Guaicuy tem sido promover a auto-organização da comunidade, que faz essa luta pela reparação paralelamente ao enfrentamento da sobreposição de danos gerados pela mineração predatória no distrito. “Não é nosso objeto tratar a questão da Samarco, mas é nosso trabalho promover a organização social da comunidade de Antônio Pereira através da participação informada e de um processo amplo de comunicação”, afirma Ronald.
Ele destaca a revitalização da Comissão de Pessoas Atingidas de Antônio Pereira como a maior entrega recente da ATI. “Hoje, nós temos uma Comissão de Atingidos de Antônio Pereira com 55 pessoas representando todo o território, num processo de um ano de construção dessa representação… A comunidade hoje tá mais fortalecida para fazer esses enfrentamentos num território que são cumulativo e sinérgico os impactos de todas as minerações que estão ali.”
A audiência foi realizada a pedido da deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) e conduzida pelo deputado Tito Torres (PSD), na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da ALMG. Durante o debate, se pronunciaram representantes das pessoas atingidas de Mariana e Ouro Preto; Gilmar Nunes da Cáritas MG (ATI Mariana); Ronald Guerra do Instituto Guaicuy (ATI Antônio Pereira); Letícia Oliveira, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Bernardo Campomizzi, membro dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Ambiental (Codema) e do Patrimônio Cultural (Compat) de Mariana; Alenice Baeta, presidente do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes); João Paulo Martins, presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG), além de Gustavo Leite, secretário de Cultura de Mariana e presidente do Conselho do Patrimônio Cultural da cidade e Anderson Aguilar, secretário de meio ambiente de Mariana.
Assista à íntegra da audiência
Anderson Aguilar, representando o poder público municipal de Mariana, defendeu a implementação do empreendimento da Samarco destacando que os estudos apontaram que não haveriam impactos relacionados a ruído, poeira e vibração, apesar de a pilha de rejeitos estar projetada para ficar a menos de 500 metros de uma residência em Camargos. O Projeto Longo Prazo também promete o desmatamento de mais de 120 hectares de Mata Atlântica e outras florestas, mas o secretário de meio ambiente disse que essa questão é de competência do Governo de Minas Gerais e não do município. De acordo com ele, a Samarco propôs uma compensação pelos danos ambientais gerados pelo empreendimento no valor de R$ 20 milhões, mas que, após reavaliação solicitada pela Secretaria de Meio Ambiente, o valor passou para R$ 80 milhões.
A deputada Beatriz Cerqueira teceu críticas à pressão realizada pela mineradora para aprovação do projeto. “Depois de tanto tempo, a mineradora se sente tão empoderada que atua pela chantagem”, denuncia ela ao destacar que o valor das compensações tem sido usado como moeda de troca pelo licenciamento. No final da audiência, ela anunciou que será requerido à Samarco que altere a localização das pilhas de rejeitos e dos equipamentos que podem causar impactos às comunidades, além de propor visita aos locais onde se pretende construir as pilhas.
Após um questionamento da deputada, Gustavo Leite, secretário de cultura de Mariana, que também é presidente do Conselho do Patrimônio Cultural, informou que o Conselho está debatendo o projeto “Longo Prazo” e se comprometeu a disponibilizar a documentação sobre o processo na internet para acesso da população.
De acordo com Bernardo Campomizzi, membro dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Ambiental (Codema) e do Patrimônio Cultural (Compat) de Mariana, é urgente que se faça uma “avaliação integrada e estratégica da mineração na nossa região de Mariana antes da aprovação de qualquer novo projeto”. O ambientalista informa que o Projeto Longo Prazo confronta o Plano Diretor do município de Mariana, porque avança tanto sobre uma zona de conservação ambiental quanto sobre núcleos urbanos de Camargos e Bento Rodrigues, ambos avanços vedados pelo Plano Diretor municipal. “Isso foi ignorado pelo Município até então”, denuncia ele.
Para Bernardo, a mineração não é compatível com áreas de relevância ambiental. “Os estudos apresentados pelo empreendedor não comprovam a capacidade do meio ambiente suportar a atividade que pretende ser implantada na área, que, conforme determina a lei, ‘é de extrema importância ecológica’, e eu adiciono social e cultural.”
Mauro Marcos da Silva, representante de Bento Rodrigues na Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), lembra da sucessão de crimes fatais cometidos pela Samarco, que chegou à região em 1977. Apenas quatro anos depois, Mauro testemunhou a morte de um trabalhador da mineradora, soterrado por uma pilha de rejeitos no chamado “bota fora”. “Lembro que, da minha casa, eu vi a avalanche de terra descendo e o trator descendo junto. José Luís foi culpado por ter pulado do trator, a Samarco alegou que, se ele tivesse ficado em cima do trator, ele não teria morrido”. Com indignação, Mauro lembra também de seu amigo na infância, uma criança morta no final do ano de 1980. “Meu amigo Evaldo, de 10 anos, veio a falecer sob uma pilha de rejeito através de uma avalanche, que o soterrou. O corpo até hoje não foi encontrado”. Ele diz que, mais uma vez, a Samarco culpabilizou as vítimas alegando que a responsabilidade era dos pais por deixarem a criança transitar no lugar que era um depósito de rejeitos.
Durante sua fala, Mauro recorda do período de construção das barragens do complexo de Germano, desde 1995, inclusive da Barragem de Fundão, em 2007. Essa última, apenas dois anos depois, já dava indícios de um possível colapso com o aparecimento de trincas. Ele conta que, nessa época, funcionários da Samarco tentaram coagir seu pai, o senhor Filomeno, que era presidente da Associação dos Moradores de Bento Rodrigues. “Falaram com ele que não era para ‘encher o saco’ e nem deixar os moradores de Bento Rodrigues ligarem para a Samarco questionando segurança de barragem, porque as barragens eram monitoradas 24 horas e totalmente seguras”. Seis anos depois, em novembro de 2015 a barragem rompeu, matou 19 pessoas imediatamente e devastou comunidades ao longo de toda a bacia do Rio Doce e litoral capixaba. É essa mesma mineradora que agora busca expandir seu território de atuação, revitimizando comunidades atingidas e atingindo novas famílias e localidades.
Depois de quase 9 anos do rompimento da Barragem de Fundão, o maior crime-desastre socioambiental da história do Brasil, muitas das pessoas atingidas pelo rejeito tóxico da Samarco não tiveram efetiva reparação dos danos sofridos. A sobreposição de danos dos diversos empreendimentos minerários da região somados à letargia e ineficiência do processo de reparação conduzido pela Fundação Renova, entidade criada pelas mineradoras para promover a recuperação do meio ambiente e a reparação integral dos danos causados, geram um espiral avassalador nas vidas de milhares de pessoas que vivem cotidianamente sobre o jugo da mineração predatória. Toda a comunidade de Antônio Pereira sente os impactos dessa triste realidade.
“Antigamente, em Antônio Pereira, existia roupa branquinha, hoje não tem condições. Nem na água que a gente bebe! Essa água está corroendo até o motor, a bomba dos carros, imagina o que que essa água está fazendo com o nós por dentro!”, revolta-se Aliliane, que completa: “A gente quer os nossos direitos! Porque a gente tinha cavalo, a gente tinha saúde, a gente tinha lazer, a gente tinha muita coisa lá. Hoje a gente vive aprisionado!”
Ana Carla, que também é geóloga, faz uma leitura crítica e técnica da realidade enfrentada na região, cujo teor de ferro minerado é o mesmo do rejeito de Carajás (Pará), onde fica a maior mina de ferro a céu aberto do mundo, de propriedade da Vale, uma das controladoras da Samarco. Com isso ela levanta o questionamento: “A gente realmente necessita desse minério?”. Ela cita o recuo do mercado chinês no consumo de minério de ferro e completa o questionamento: “Para onde tá indo esse minério? Pra estoques lá na China que não tão dando conta de absorver essa quantidade de minério? E aí vem a fala de todos aqui: a ganância! É o lucro acima das vidas humanas!”
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