Por Otavio Kaxixó, 27 anos, estudante de medicina
O rio Pará, para nosso povo, representa vida e cultura.
Costumamos dizer que ali é um braço da história Kaxixó. Ele é banhado por outros rios e córregos, e no final, se junta para celebrar o povo Kaxixó, pois as árvores, os peixes e os animais que estão em torno também são parte do nosso povo. O Rio Pará é tido como um dos principais lugares pra gente tirar fonte de renda e alimentação das famílias que vivem em nossas três aldeias: Capão do Zezinho, Fundinho e Pindaíba. Não é apenas um leito de rio, é o lugar que narra o processo histórico cultural e social do meu povo, ali estão guardadas histórias de muitas gerações. Ele é um guardião de memórias.
O rio Pará é um lugar que nos abastece de comida e de espiritualidade. Sem o rio Pará, um pedaço do Kaxixó vai embora. É por isso que ali existem tantos lugares sagrados, alguns santuários que vibram a presença dos nossos antepassados. É por isso que vamos até as águas para celebrar alguns rituais importantes para nossa espiritualidade. O rio é onde nos encontramos e nos fortalecemos.
Depois do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, praticamente mais nenhum tipo de ritual e manifestação cultural aconteceu no rio Pará. São vários agravos que fazem com que a gente vá perdendo um pouco da conexão que temos com essas águas, e isso é algo muito doloroso.
Depois do crime cometido pela Vale, as coisas mudaram significativamente. Teve aumento de pessoas frequentando o rio, porque quem antes visitava ou pescava no rio Paraopeba foi para o Rio Pará. Afinal de contas, quem vai querer mergulhar e pescar em águas contaminadas pela lama? Isso acabou sobrecarregando as águas usadas pelo nosso povo. Agora nos deparamos com um volume maior de pessoas não indígenas e de gado nesse espaço, situação agravada pelo desmatamento que vêm acontecendo na região.
A vazão do nosso rio baixou, por aqui está sendo construído um sistema que vai extrair do rio Pará a mesma quantidade de água que era do Paraopeba, para abastecer a cidade de Pará de Minas. Não fomos consultados em nenhum momento sobre isso. E essa violação de direitos é mais um crime da Vale. Em momento algum existiu articulação conosco sobre algo que afetaria tão diretamente nossas vidas, e nem buscaram saber sobre um povo que precisa do rio para manter suas famílias e suas tradições vivas.
Também encontramos com frequência linhas de anzol dentro do leito, devido ao aumento de pescadores que antes frequentavam o Paraopeba. Com o tempo, deixamos de fazer coisas simples como tomar nossos tradicionais banhos nus, algo que é uma tradição nossa. Pra gente, mergulhar pelado no rio não é nada obsceno, é um ato de purificação.
O processo está caminhando para um colapso, porque não temos liberdade de deslocar dentro do rio, manifestar dentro do rio, ter os banhos de rio, extrair alimentos no rio e nem de ter a conexão tão direta com o bioma cerrado dentro do rio. Estamos nos sentindo sufocados. Há tempos já lutamos pela demarcação de 5411 hectares. Vivemos em uma área que não representa nem 1% desse espaço.
Hoje em dia, os rituais passaram a acontecer dentro da aldeia Capão do Zezinho. O dia do indigena, por exemplo, era celebrado na beira do rio, nosso lugar sagrado. A comunidade toda se programava para fazer alimentações típicas ali. Mas agora não dá mais, porque em algum momento o ritual é invadido por outras pessoas. Quando turistas se aproximam desses rituais, às vezes estão alcoolizados e drogados, em uma frequência diferente da que a gente quer para esse momento. Já até aconteceu de ter briga com gente do nosso povo. Decidimos, por medida de segurança, parar com os rituais à beira rio para evitar que alguém se machucasse. Esse tipo de afastamento rompe nosso laço ancestral e espiritual com a terra.
A humanidade às vezes parece não ter em mente o significado da representatividade de uma cultura. Penso que os processos que acontecem diante de qualquer evolução dentro da sociedade envolvem um processo cultural. Quando as pessoas incentivam esse apagamento, elas começam a lutar contra a cultura e contra sua própria existência. Todo indivíduo veio de um processo ancestral e cultural. Isso não pode ser esquecido. Nossa cultura Kaxixó envolve o elo com a terra, envolve o rio e os processos ancestrais. Entendemos muito bem a dinâmica e o intuito do nosso processo cultural. E estamos firmes, lutando para preservá-lo. Propagamos a cultura e propagamos a vida, a preservação. Para nós, a terra é vida. Da terra a gente educa, da terra a gente tira processos de saúde, da terra a gente vive a cultura, da terra a gente se harmoniza com o meio ambiente. O homem não indígena que compactua com o sistema capitalista sangra, cava e deixa a terra morta.
Para a gente, o cultivo é o caminho.
Compreender tudo isso é muito difícil para quem vive fora. Pra gente dói muito ter que falar a importância de preservar e manter isso vivo. Quando vemos desastres acontecendo, a gente vê o derramamento de sangue que já aconteceu no processo de colonização, a gente tenta decolonizar, e quando um rio seca na nossa frente, quando a nascente seca, ou quando a água é contaminada pela lama de rejeito de minério, isso é muito triste. Parece que não estamos saindo do lugar, e sim piorando.
Nossos filhos e netos não vão mais ver um rio limpo correndo?
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