As atividades de mineração causam danos à saúde e econômicos há mais de uma década em Antônio Pereira. Nos últimos quatro anos, os problemas foram agravados pelo risco de rompimento e obras de descaracterização da Barragem Doutor. Confira o vídeo!
Em 2013, uma família, moradora de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto/MG, denunciou na imprensa os danos que vinha sofrendo pela poeira de mineração causada pela Barragem Doutor, da Vale. Mais de uma década depois, a equipe do Instituto Guaicuy voltou ao local e os relatos dessa família evidenciam negligência ao pedido de socorro diante dos efeitos danosos da mineração predatória.
“Em 2013 foi a primeira filmagem, quando a gente já não estava aguentando mais reclamar para a empresa, a Vale. Eu acho que só piorou. Antigamente, só tinha a barragem; hoje, tem as empreiteiras, que os caminhões, carros, que passam indo para Doutor e sobe aqueles canudos de poeira, e chega aqui. Isso é fato!”, lamenta João Carlos de Souza, 68 anos, aposentado.
Em 2013, João Carlos morava na Vila Residencial Antônio Pereira, que fica dentro do distrito, com as filhas e a esposa. Hoje, o casal vive sozinho. “Minhas meninas moravam aqui e elas tinham problemas sérios de alergia, sinusite, problemas na garganta, nariz. Hoje, elas moram em BH, mas, eu e minha esposa temos os mesmos problemas”, afirma.
Além da falta de qualidade do ar, apontada por João Carlos como motivo dos problemas respiratórios da família, ele revela , em seu depoimento, outros danos causados pela atividade minerária na região, como aumento do fluxo de caminhões, gastos com materiais de limpeza, exploração sexual infantil e rompimento dos laços comunitários, pois alguns vizinhos foram embora e há muitas pessoas desconhecidas morando no local.
Os transtornos descritos por ele afetam não apenas os moradores da Vila, mas toda a população de Antônio Pereira. Embora a poeira seja um problema constante para a comunidade, a partir do segundo semestre, quando há uma combinação da escassez de chuvas e aumento dos ventos, há uma elevação da quantidade de denúncias e pedidos de ajuda que chegam à equipe do Guaicuy, que atua como Assessoria Técnica Independente da população do distrito.
Junto à busca por reparação está o direito à participação informada
A presença do Guaicuy no distrito também é um indício que os moradores de Antônio Pereira estão na luta contra os danos causados pela mineração. Em 2019, a empresa Vale acionou o Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM) devido ao risco de rompimento e obras de descaracterização da Barragem Doutor. Ou seja, além de enfrentarem a poeira constante, os moradores passaram a viver o pânico do risco de colapso da barragem e com os transtornos causados pelas obras.
Para Aliliane Veríssimo, moradora da região da Pedreira, uma das áreas mais afetadas pela poeira em Antônio Pereira, o sonho de começar uma vida nova no distrito teve início em 2019. Mas, as obras na barragem, o aumento do fluxo de caminhões, as constantes nuvens de poeira, e os danos à saúde física e mental causados pela poluição do ar, tornaram a vida de Aliliane e de sua família uma luta incessante por reparação e justiça.
“Meu dia é levantar, passar um pano na mesa, passar um pano na casa e, daqui a pouco, estar escrevendo onde eu limpei. Antes, em Antônio Pereira, a gente tinha poeira, água limpa e a gente tinha lama normal. Hoje, a gente respira poeira, a gente bebe minério e vive com o minério 24h. A casa não para limpa, roupas brancas não param limpas; o minério impregna na roupa branca de um jeito que não tem como mais a gente usar. […] Essa poeira é dia e noite, porque os caminhões trabalham de segunda a sábado, 24 horas.”
Diante desse cenário insalubre e danos socioambientais, a empresa Vale se tornou ré em uma Ação Civil Pública em defesa dos direitos da população de Antônio Pereira. Um desses direitos é a garantia da participação informada da comunidade no processo. Para isso, desde dezembro de 2022, a população conta com a Assessoria Técnica Independente (ATI) do Instituto Guaicuy.
Nesse papel de apoio técnico das pessoas atingidas pela Barragem Doutor, as equipes recebem relatos diários dos adoecimentos e outros danos causados pela poeira de mineração. Os pedidos de ajuda para denunciar o problema chegam em atendimentos individuais, nas reuniões com a comunidade e nos grupos de WhatsApp gerenciados pela ATI.
Em 2023, os vídeos e áudios encaminhados pelos moradores do distrito à ATI deram origem a reportagem no site do Instituto e na imprensa local, na região de Mariana e Ouro Preto:
Negligência e medidas de contenção ineficazes
Apesar das inúmeras denúncias, a Vale afirma adotar medidas de contenção da poeira e atribui ao período de estiagem o agravamento das nuvens de poeira. No entanto, a população afirma que as medidas adotadas pela empresa, como utilização de carros-pipa, são insuficientes e sem a periodicidade necessária. Uma evidência das afirmações da comunidade é que as nuvens de poeira continuam a causar estragos. Confira o vídeo com depoimentos de moradores de várias regiões do distrito.
Luta contra os danos em Antônio Pereira ganha força com a revitalização da Comissão
A organização da comunidade é uma ferramenta de fundamental importância na busca por direitos. No primeiro semestre deste ano, com o auxílio do Instituto Guaicuy, a população de Antônio Pereira deu um passo importante no fortalecimento comunitário com a revitalização da Comissão de Pessoas de Atingidas, que atua como representante legítima da comunidade junto aos órgão de Justiça.
E as vozes que hoje compõem a Comissão, formada por mais de 50 integrantes após a revitalização, também ecoam quando o assunto é pedir soluções para a poeira de mineração que atinge o distrito. Um exemplo é o depoimento de Ivone Pereira, garimpeira tradicional e moradora de Antônio Pereira, durante a reunião de apresentação dos novos membros da Comissão ao Ministério Público de Minas Gerais, no dia 30 de julho de 2024. Na ocasião, Ivone levou um pano com a poeira que ela remove da sua casa todos os dias e fez um relato impactante sobre os adoecimentos causados pela poeira.
“Não vamos desistir de lutar pelos nossos direitos. Vou mostrar aqui a poeira da minha casa, que eu tiro todo dia, e a poeira que a gente está respirando dia e noite, poeira contaminada por rejeito de minério. Olha a situação que encontra a minha casa, isso aqui é todo dia. Isso aqui é a poeira. Isso aqui que nós estamos respirando dia e noite! Eu pergunto pra vocês: é justo a gente viver desse jeito? Estamos perdendo pessoas dentro da nossa comunidade. Cada dia morre um com a doença dos pulmões”, denunciou.
No início de setembro, várias pessoas foram entrevistadas pela equipe do Guaicuy sobre a situação atual diante da falta de qualidade do ar no distrito. Agenor Magalhães, 57 anos, vice-presidente da Associação da Vila Residencial Antônio Pereira, coordenador da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis do Distrito de Antônio Pereira (AMRAP) e integrante da Comissão de Pessoas Atingidas de Antônio Pereira, também falou sobre os vários anos de denúncias e reivindicações por mais qualidade de vida no distrito.
“Só falta a gente comer poeira aqui, porque respirar, a gente já respira. Só que lido com isso aqui, já faz 28 anos e nada se faz para resolver […] Não é fácil, não, lidar com essa poeira, mais queimada, mais sujeira, falta d’água. Tá bravo!”, lamenta.
Apesar das dificuldades enfrentadas com a poeira, Agenor, que é natural da cidade de Itabira/MG, diz que pretende ficar em Antônio Pereira e conta sobre o que tem feito junto com a comunidade na busca por qualidade de vida no distrito e na Vila Residencial Antônio Pereira.
“Plantei minha raiz aqui, eu quero ficar. Vamos brigar com essa poeira e vamos ver o que a Vale vai fazer para a gente futuramente. Mas, infelizmente, a gente fala que é mal necessário, né? A gente depende muito das mineradoras, dos empregos, e vamos tentar conciliar essas duas questões. Acho que as empresas precisam se conscientizar e ver que, antes da mineração, tem o ser humano, tem a vida”, diz.
Agenor lembra que, há cinco anos, os estragos causados por um forte vendaval mobilizaram a comunidade a buscar por soluções efetivas por parte da mineradora.
“Teve um vendaval, uma coisa fora do comum. Na época, eu era presidente da associação de moradores, e como representante, tomei minhas providências com relação à poeira. Chegamos a tirar pás de minério de dentro de casa. Aí, eu acionei a Vale e fui até atendido. Eles vieram com caminhão-pipa, lavando as ruas, reabastecendo as caixas d’água, as piscinas do nosso clube (localizado na Vila). Mas, foi um cenário bem constrangedor, muito incômodo. Depois disso, eles começaram a dar um pouco mais de atenção, não o necessário, porque a gente ainda convive com a poeira, Mas, os aspersores que eles instalaram, de 12 metros de altura, foi uma sugestão que eu dei pra Vale. Eu vi em Itabira, que é a minha terra natal. Na mina de Cauê, lá tem isso. Além disso, eles passaram a usar o polímero nos vagões que transportam minério. Esse polímero é usado nas barragens para evitar um impacto maior para a população, mas não resolve 100%, porque a poeira é muita, o vendaval é muito e acaba trazendo bastante poeira pra cá”, acrescenta.
Denúncias foram enviadas ao Ministério Público de MG, Secretarias Municipal e Estadual de Meio Ambiente de Ouro Preto e à Polícia
Diante das recorrentes denúncias apresentadas pelas pessoas atingidas pela Barragem Doutor, o Instituto Guaicuy, enquanto ATI, comunicou ao Ministério Público de Minas Gerais os relatos sobre a poluição causada por nuvens de poeira no distrito. Os comunicados deram origem a três notícias de fato, que são notícias, enviadas ao MP, sobre violação de direitos ou ilegalidade. Duas delas foram encerradas após a Vale argumentar que as nuvens de poeira teriam se originado dos fortes ventos ocasionados por um ciclone extratropical.
No entanto, a terceira notícia de fato, resultado de uma nuvem de poeira registrada em 20 de agosto de 2023, ainda tramita na 1º Promotoria de Meio Ambiente de Ouro Preto. Essa mesma nuvem de poeira levou a Associação de Moradores da Vila Residencial Antônio Pereira a registrar um boletim de ocorrência na Polícia Civil. A denúncia dos moradores motivou uma visita de fiscalização da Polícia Militar do Meio Ambiente de Mariana nas obras de descaracterização da barragem.
Quase um mês após a visita, a Polícia Militar de Meio Ambiente encaminhou um ofício para a 1º Promotoria de Meio Ambiente com o relatório de fiscalização, onde apontou que a poluição causada pela mineradora é considerada infração gravíssima, conforme art. 112, anexo I, código 114, decreto estadual n.47.383/2018.
Código 114 – infração gravíssima: Causar intervenção de qualquer natureza que resulte em poluição, degradação ou dano aos recursos hídricos, às espécies vegetais e animais, aos ecossistemas e habitats ou ao patrimônio natural ou cultural, ou que prejudique a saúde, a segurança e o bem-estar da população. (art. 112, anexo I, código 114, decreto estadual n.47.383/2018).
A Polícia apurou, junto a funcionários da empresa Vale, que o material utilizado para minimizar o levantamento de poeira, uma espécie de “polímero”, não havia sido aplicado na data da denúncia, o que intensificou a quantidade de partículas suspensas no ar. Além disso, a Vale reconheceu que, no dia dos fortes ventos, não foi feita umectação na comunidade e isso agravou a situação da poeira que atingiu a Vila Residencial Antônio Pereira.
No documento, a Polícia do Meio Ambiente informou que o caso seria encaminhado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente – SEMAD, órgão competente para apurar o caso. Ela também afirmou que houve danos ambientais e sociais e solicitou ao MPMG que firmasse TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com a Vale como forma de compensação e reparação parcial do dano. O MPMG enviou ofício à SEMAD no dia 22/07/2024 para prestar informações, porém, até o presente momento a SEMAD ainda não se manifestou.
Apesar da fiscalização ter sido realizada pela Polícia do Meio Ambiente, o Boletim de Ocorrência ainda está sob investigação e apuração na Polícia Civil de Ouro Preto, órgão responsável por realizar a investigação dos fatos. Em resumo, a poluição atmosférica e danos causados pelas nuvens de poeiras são alvos de várias denúncias e investigações:
Instituto Guaicuy: recebe as informações e reclamações da população; leva os depoimentos para conhecimento da mídia e comunica os órgãos de Justiça, como o Ministério Público de Minas Gerais. Além disso, é responsável por acompanhar os processos a fim de levar os resultados para a comunidade de Antônio Pereira.
1º Promotoria de Meio Ambiente de Ouro Preto: investiga a denúncia; notifica a mineradora Vale e os órgãos responsáveis de meio ambiente e pede providências para o problema.
Polícia Civil: órgão de segurança procurado pela população para registro de Boletins de Ocorrência sobre irregularidades no distrito.
Polícia Militar de Meio Ambiente: realiza fiscalizações, recomenda estudos sobre a qualidade do ar e aplica multas quando valor a ser cobrado é menor que 60.503,38 UFEMG’S (Valor da unidade fiscal do Estado de Minas Gerais).
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Ouro Preto (SEMMADS): responsável por investigar os danos causados ao meio ambiente e às pessoas, assim como aplicar sanções. No caso da poeira em Antônio Pereira, o Ministério Público solicitou que a SEMMADS realize estudos sobre as amostras encaminhadas pela Polícia Militar de Meio Ambiente. No entanto, a Secretaria informou sobre suas limitações para a entrega de tais análises, no entanto, sugeriu que o MPMG articule junto com a SEMAD (Secretaria Estadual de Meio Ambiente), inclusive por meio de TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) a inclusão de fatores que considerem a elaboração de estudo de dispersão atmosférica pela Vale, bem como a implementação de rede e programa de monitoramento automático de qualidade do ar.
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (SEMAD)/Superintendência Regional de Meio Ambiente (SUPRAM): responsável por prestar informações sobre o resultado das análises realizadas nas amostras encaminhadas pela Polícia Militar de Meio Ambiente, que constatou suposta poluição atmosférica causada pela falta de umectação durante as atividades de descomissionamento da Barragem de Doutor, no distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto.
Vale: empresa investigada; é obrigada a responder aos questionamentos dos órgãos de investigações e apresentar soluções. Para o controle da poeira, a Vale afirma que tem utilizado uma cortina de aspersão ao entorno da barragem; intensificou a aplicação de supressores de poeira em taludes expostos e polímeros em vias de acesso; realiza a umectação de vias por carros-pipa direcionados com rotogramas e periodicidade diária, inclusive em finais de semana (quando não há atividade da obra, como trabalho preventivo), e mobilização de carros-pipa adicionais para o período de seca; realiza a revegetação de áreas expostas através de hidrossemeadura e biomanta; monitora a qualidade do ar dentro da comunidade de Antônio Pereira. Além dessas ações, a empresa afirma que concluiu, em maio de 2024, o projeto para plantio de cortina arbórea com espécies estratégicas em torno das obras de descaracterização da barragem.
Por Mariana Viana
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