Instituto Guaicuy

Conheça as dificuldades das pessoas atingidas pela Vale que buscam individualmente a indenização na Justiça

23 de fevereiro, 2024, por Laura de Las Casas

Estudos das ATIs mostram como são julgadas ações individuais de pessoas atingidas contra a Vale

Na semana em que completaram-se cinco anos do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, a Repórter Brasil divulgou um levantamento exclusivo feito pelo Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab) sobre as indenizações individuais das pessoas atingidas. A pesquisa, feita pela instituição responsável pela Assessoria Técnica Independente (ATI) na Região 3, composta  pelos municípios de Caetanópolis, Esmeraldas, Florestal, Fortuna de Minas, Maravilhas, Papagaios, Pará de Minas, Paraopeba, Pequi e São José da Varginha, mostra como são julgadas as ações travadas na Justiça por pessoas impactadas pelo desastre-crime causado pela mineradora. O número chama a atenção: 75% das decisões foram desfavoráveis às pessoas atingidas.

Leia aqui: Justiça de Minas corta em até 80% o valor de indenizações a atingidos de Brumadinho

Situação nas Regiões 4 e 5

O Instituto Guaicuy, ATI nas Regiões 4 (Curvelo e Pompéu) e 5 (Região da Represa de Três Marias e Rio São Francisco), também faz um acompanhamento das ações movidas individualmente pelas pessoas atingidas desses territórios. Até a última atualização, feita em julho de 2023, 455 procedimentos, incluindo processos e acordos referentes à indenização individual pelos danos provocados pelo rompimento da barragem da Vale, foram levantados nas Regiões 4 e 5.  De acordo com Paula Constante, Assessora de Mitigação e Coordenadora do Guaicuy na Região 4, os pedidos mais comuns são de reparação por danos materiais, por danos morais, por pagamento do auxílio emergencial, além de questões relacionadas ao acesso à água e aos danos à saúde. “A maior parte das ações em tramitação está na fase de produção de provas”, explica.

Ana Clara Amaral, advogada e Especialista em Reconhecimento do Instituto Guaicuy, conta que um dos grandes desafios enfrentados pelas pessoas que optam por entrar com o pedido de indenização individual é o de ter a legitimidade ativa para a ação reconhecida pela Justiça, o chamado reconhecimento do direito de ter o pedido julgado. “Muitas vezes, por questões documentais referentes à moradia ou ao exercício profissional, o juiz entende não ser possível reconhecer o vínculo da pessoa com a região atingida e extingue o processo sem resolução de mérito, ou seja, sem chegar a discutir os danos”, afirma.

Superada essa questão, segundo Ana Clara, depois vem o desafio da produção de provas, que consiste em comprovar tudo aquilo que a pessoa atingida sofreu, para discutir os danos em si e a extensão de cada um deles. Assim, é possível chegar a um valor a ser indenizado. Ana Clara explica que, muitas vezes, os juízos ocorrem de forma simplista. Que os julgamentos estão pouco antenados à amplitude das discussões sobre uma reparação socioambiental deste tamanho, além de pouco cientes dos debates materiais sobre a indenização individual no processo coletivo. Dessa forma, em geral, decidem que os documentos da petição inicial já são o suficiente para julgar tudo sobre o direito da pessoa atingida.

Por isso, é comum acontecer que o pedido por uma perícia específica para averiguar os danos causados pelo rompimento da barragem seja rejeitado pelo juiz. “Quando há perícia,  tratam-se de perícias mais simples, restritas e de menor investimento do que a necessária para apurar os danos continuados. Também há pouca clareza e unidade sobre como se interpretar a aplicação dos parâmetros previstos no Termo de Compromisso celebrado entre Vale e DPE nas Regiões 4 e 5”, complementa Ana Clara Amaral. 

Levantamento do Nacab 

O Nacab analisou 319 processos julgados em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), referentes aos territórios de toda a bacia do Paraopeba. De cada quatro decisões, três foram desfavoráveis aos atingidos pelo rompimento da barragem da mineradora Vale.

A Repórter Brasil conversou com pessoas como Alcione Oliveira, gari que trabalhava no momento do rompimento e conseguiu escapar do rejeito por uma questão de poucos minutos. Após assistir à devastação por onde a lama tóxica passou, ele foi diagnosticado com transtorno de estresse pós-traumático, distúrbio psicológico caracterizado pela repetição do terror causado por situações extremas, como guerras ou desastres. Depois de entrar na Justiça contra a Vale pelos traumas gerados pelo episódio, Alcione chegou a ganhar R$100 mil em sentença de primeiro grau. Porém, o valor foi reduzido em 80% pelo TJMG, após recurso da Vale.

Já nos territórios acompanhados pelo Guaicuy, a esmagadora maioria dos processos individuais não chegaram a ter uma sentença. “Essa é a razão pela qual não temos tantos processos na segunda instância, como nas Regiões 1, 2 e 3 atingidas pela Vale [as mais próximas de Brumadinho]. A maioria foi extinta sem resolução do mérito e só uma pequena parte com a homologação de um acordo, e uma porção apenas no final de 2023 chegou a ter a audiência de julgamento marcada para 2024”, afirma a advogada do Guaicuy. “Apenas a partir de uma sentença, seja negativa ou positiva para a pessoa atingida, é que a demanda vai chegar para a segunda instância, que é o Tribunal”.

Segundo Ana Clara Amaral, até o momento foi raro ver casos em que a Vale concorde em fazer um acordo de indenização individual com moradores das Regiões 4 e 5, sendo mais conveniente para a mineradora deixar o processo correr até o final, diante do panorama da ausência de precedentes judiciais positivos na região. 

De acordo com a especialista do Guaicuy, um dos motivos para isso acontecer é a dificuldade com a documentação necessária para a produção de provas e demais exigências do processo. “Tudo fica mais fácil para quem tem uma farta documentação. Grandes fazendeiros e grandes empresas, por exemplo, têm o registro de toda a sua atividade. Então, é mais simples comprovar a legitimidade, comprovar que existiam, o quanto ganhavam e deixaram de ganhar, e comprovar onde estavam na época do rompimento. Depois de demonstrada documentação convencional que aponte isso, o interesse da Vale em propor um acordo e impedir uma sentença, aumenta”, diz. 

Clique aqui para ler a reportagem completa. 

Indenizações individuais: quais os caminhos? 

Existem dois caminhos possíveis para uma pessoa atingida conseguir acessar sua indenização individual: o processo coletivo e a ação individual. No processo coletivo, todas as pessoas atingidas já estão incluídas. A ação em curso na Justiça já contempla todos que sofreram danos individuais pelo rompimento, porque o Ministério Público e a Defensoria Pública, que moveram a ação, são os defensores dos interesses individuais de todas as pessoas atingidas. 

Nesse processo, a Vale já foi condenada a reparar todos os danos, inclusive os individuais, mas os valores, as formas e quem tem o direito de receber ainda estão sendo discutidos. A forma de se discutir esses valores deve ser por meio da resolução coletiva (liquidação coletiva), que é uma maneira de produzir provas e parâmetros (ou seja, a mesma régua) para definir as indenizações de cada pessoa atingida, de acordo com a intensidade dos danos sofridos por cada uma. No entanto, a Vale está recorrendo à segunda instância e se manifestando contrária à resolução coletiva das indenizações individuais. 

Já para iniciar uma ação individual, a pessoa atingida pode procurar a Defensoria Pública mais próxima ou contratar um advogado particular. “Na ação individual, você pode discutir os mesmos danos que são discutidos no processo coletivo, só que a produção de provas, ou seja, a comprovação de tudo aquilo que a pessoa atingida sofreu, é responsabilidade apenas da pessoa que entrou com a ação”, explica a advogada do Guaicuy.

Ana Clara ressalta a importância de se lembrar que a ação individual é de responsabilidade apenas da pessoa que entrou com ela. “Em toda ação judicial, existe o risco de não ganhar. Então, deve-se considerar antes que, se a pessoa não houver obtido o direito à justiça gratuita e “perder” a ação, ela pode ser obrigada pelo juiz a pagar as custas e despesas processuais, além dos honorários de sucumbência, que devem ser pagos ao advogado da Vale”, sinaliza. 

Ela também ressalta uma consequência importante quando se perde na ação individual: se o juiz definir que a pessoa, por exemplo, não sofreu danos morais, e se esgotarem todas as possibilidades de recurso, ela não poderá levar novamente à justiça a reivindicação de danos morais contra a Vale em razão do rompimento. “Então, as pessoas atingidas que já tiverem seus pedidos negados na ação individual não vão poder se aproveitar do resultado do processo coletivo, aproveitarão somente em relação aos danos que não foram abarcados pela decisão no processo individual”, conclui.

 

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