Instituto Guaicuy

Encontro de Benzedeiras de Antônio Pereira: “o quê que eu corto?”

19 de julho, 2024, por Laura Alice

Primeiro encontro de benzedeiras de Antônio Pereira reúne fé, saúde e tradicionalidade em busca de reconhecimento e reparação

Oh, benzedeira

Oh, benzedeira

Vem chegando devagar

É de mansinho que eu ouço o seu cantar

Oh, benzedeira

Vem com as ervas, vem curar

Vem com o poder da Virgem da Conceição

Com o seu manto protege o seu coração

E com humildade concede o perdão

(Trecho adaptado de cancioneiro popular)

Antônio Pereira, distrito ouropretano atingido pela mineração, é um vasto território de cultura e tradicionalidade. Por muitos anos, em especial quando o acesso à medicina ainda era precário, os cuidados com a saúde eram delegados às benzedeiras de Antônio Pereira que, de geração em geração e ao longo de centenas de anos, trazem a cura através da fé e conhecimentos tradicionais sobre ervas e plantas medicinais, chás e garrafadas.

Pensando neste grupo específico, dentro do contexto da reparação pelos danos causados pelo risco de rompimento e obras de descaracterização da Barragem Doutor, da mineradora Vale, nossa equipe organizou o primeiro encontro de benzedeiras de Antônio Pereira, que aconteceu no último sábado, dia 13, no escritório da do Guaicuy no distrito e reuniu cinco das 14 benzedeiras mapeadas até o momento.

Fé e tradição

Fé sincrética e tradicionalidade; Foto: Léo Souza/IG

No encontro, as benzedeiras contaram um pouco de sua história e de como iniciaram sua trajetória na benzeção. Os relatos deixam claro que a fé é um princípio da prática passada de mães/pais para filhas/filhos, como é o caso de Dona Maria (Ana Maria), que benze com o cordão de São Francisco que ganhou de Dom Luciano, arcebispo de Mariana, falecido em 2006.

“Aprendi a benzer com meu pai e minha mãe. Benzo qualquer enfermidade. O cordão tira tudo.”

Dona Pimpa (Marília de Fátima) conta que aprendeu o ofício com a mãe, que também benzia vento virado, quebrante e aguamento (no caso das crianças); espinhela caída, cobreiro, sentimento e destroncado (no caso dos adultos). Dona Pimpa benze com brasa (carvão em brasa no copo com água), com terço e com machado

“Corto cobreiro com o machado, batendo 3x na porta de madeira e perguntando ‘O quê que eu corto?’. Benzo indo na frente com o machado e a mãe atrás com a criança no colo, pra cortar o medo de criança andar.”

Dona Ivone Pereira Zacarias, garimpeira tradicional e importante liderança comunitária, também é benzedeira. Ela conta que aprendeu o ofício com dona ‘Figeninha’, já falecida, mas muito reconhecida na comunidade e em Mariana. Dona Ivone conta que benze presencialmente e à distância. Corta, dentre outros males, quebrante, espinhela caída e mal olhado, mas tem um rito especial preparatório:

“Pra benzer uma pessoa, eu tenho que me benzer primeiro. Então, acendo uma vela e rezo pro meu anjo da guarda, e peço proteção pra mim primeiro. Se eu não estiver preparada, dependendo do que a pessoa tiver, cai em mim.”

A pesquisadora Sara Helena Quintino, atuante no território, lembra que este grupo trata de uma saúde que vai além do corpo físico:

“Por tudo aquilo que eu venho ouvindo, eu percebo o grupo de benzedeiras como o corpo da saúde de Antônio Pereira durante muito tempo. É um grupo de forte tradição cultural. Vocês são saberes acumulados! Vocês representam esses lugares sagrados de saúde!”

A importância da palavra falada no ofício e na passagem da tradição

Dona Regina, a mais velha das benzedeiras, aprendeu com a mãe e ensinou o ofício à filha. Foto: Léo Souza/IG

-Como que benze aguamento?

-Ah, tem umas palavras que a gente fala!

Sr. Paulo, companheiro de dona Pimpa, também esteve no primeiro encontro de benzedeiras de Antônio Pereira e contou que sempre confiou no trabalho delas:

“são pequenas palavras, mas são as palavras de Deus. São pequenas palavras que curam!”

O ofício de benzer é passado de geração em geração através da oralidade, ou seja, de palavras faladas, traço marcante da prática que já foi tema de pesquisa de mestrado na Universidade Federal de Ouro Preto.

As palavras que curam, também são característica dessa tradição, que mantém influências culturais das matrizes africanas, católicas e indígenas, que fazem parte do contexto histórico do povo brasileiro. Nesse sentido, Dona Regina, a mais velha das benzedeiras do Pereira, conta como a tradição chegou até a filha, Eliene:

“Ela aprendeu comigo e eu aprendi com minha mãe. A gente ensina o filho pelas palavras e pelo modo que faz.”

Também foi pelas palavras que nossa equipe conseguiu encontrar as benzedeiras do Pereira. Em um trabalho de caminhar pelo distrito procurando e perguntando, as pessoas indicavam as benzedeiras com reconhecimento e respeito:

“-Procura a dona Lilia ou a dona Pimpa!”

“-Dona Maria também benze!”

“-Pode bater lá, ela atende todo dia, menos domingo!”

As mobilizadoras do Guaicuy, Carla de Jesus e Mayara Pacces Vicente, contam que, para fazer o levantamento dos nomes das benzedeiras, a equipe elaborou uma metodologia que envolve: o trabalho de busca ativa (porta a porta), uma visita para um diálogo a partir de um roteiro pré-estruturado, e finalmente o encontro:

“Foi a partir desse diálogo que recebemos a demanda de realizar um encontro”. Mayara Pacces Vicente

“Há muito tempo elas não se viam. Elas são comadres, fizeram parto umas das outras, são noras e sogras, cunhadas; elas sentiram a necessidade de se reunir”. Carla de Jesus

Benzedeiras de Antônio Pereira e processo de reparação

Camila de Fátima Bento, coordenadora de direitos das pessoas atingidas e neta de benzedeira, conta que o levantamento de Povos e Comunidades Tradicionais (PCT’s) do Pereira acontece de modo contínuo e que eles têm direitos específicos garantidos por lei

Confira o conteúdo já produzido pelo Guaicuy sobre Protocolo de Consulta aos Povos e Comunidades Tradicionais  clicando aqui.

O Decreto 8.750/16, que institui o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, inclui as benzedeiras neste grupo. Camila lembra que, assim como os garimpeiros, os indígenas e outros grupos específicos cujos conhecimentos são passados de mães/pais para filhas/filhos, o grupo de benzedeiras é um grupo tradicional, que precisa de um olhar diferenciado no processo de reparação.

“As benzedeiras constituem um grupo de tradição no Pereira. É um grupo que precisa de proteção e reconhecimento, porque quando se tem um problema tão grande e complexo como o da Barragem Doutor, fica difícil as tradições passarem à frente.”

Dona Lilia (Maria José de Assis) já identifica a interferência da mineração no ofício:

“Algumas ervas usadas pra benzer, como o chapéu de couro e cavalinha do brejo só eram encontradas próximos das cachoeiras, que a Vale proibiu a comunidade de acessar.”

Dona Regina fala que, após a elevação do nível de risco de rompimento da Barragem Doutor, a quantidade de pessoas que procuram a benzeção aumentou, tanto pelos problemas de saúde quanto pelo aumento da população local.

Dona Maria, que mora na Projetada 10, de onde algumas pessoas foram removidas devido à Zona de Autossalvamento, lamenta a diminuição de pessoas que a procuravam para benzer. Ela relata com tristeza a perda do convívio com os antigos vizinhos e o medo que as pessoas têm do risco de rompimento da barragem.

Ana Coutinho, da equipe de mobilização e cientista social, conta que as benzedeiras são conhecidas e respeitadas na comunidade, sendo procuradas, inclusive, por pessoas de outras localidades, que vêm em busca de benzimento e remédios naturais.

“As benzedeiras estão aqui representando a força das mulheres do Pereira, o cuidado através da benzeção.”

Dona Ivone, que tem uma percepção clara da relação entre o ofício de benzer e o processo de reparação dos danos causados pela Vale no Pereira, finaliza:

“Eu desejo que a comunidade volte a ser como antes: a gente era saudável, a vida era saudável. Pra qualquer coisa, a gente tomava um chá e resolvia, hoje nada resolve. Se continuar do jeito que estamos, respirando essa poeira, não vamos a lugar nenhum.”

Compromisso da ATI

O Instituto Guaicuy, Assessoria Técnica Independente das pessoas atingidas pela Barragem Doutor em Antônio Pereira, atua no território com o compromisso de garantir a participação informada de todas as pessoas atingidas no processo de reparação dos danos causados pela Vale no distrito.

O encontro de benzedeiras de Antônio Pereira, bem como o levantamento contínuo de PCT’s, tem como objetivo reconhecer a tradicionalidade e garantir a participação destes grupos nas diferentes etapas do processo de reparação, incluindo o cadastro e a Matriz de Danos, que serão aplicados e elaborados pelo GEPSA, grupo de estudos da UFOP designado perito da justiça no caso da Barragem Doutor.

Para saber mais a respeito da atuação do Guaicuy em Antônio Pereira, basta acessar o nosso site e redes sociais, como o InstagramFacebook.

 

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