Na sequência da série “Tecendo redes: saúde e assistência social”, o Instituto Guaicuy entrevista Janaína Moraes, psicóloga do Conviver, importante conquista das pessoas atingidas de Mariana na luta pela reparação integral e pela reabilitação da saúde mental após o crime-desastre de 2015.
A luta pela reabilitação da saúde mental de pessoas atingidas pela mineração predatória é constante em territórios atingidos por barragens em Minas Gerais. Essa luta ganha mais urgência a partir dos dois maiores crimes socioambientais envolvendo barragens da mineração no Brasil – em 2015 com o rompimento da Barragem de Fundão da Samarco, Vale e BHP em Mariana; e em 2019, com o rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão, da reincidente Vale, em Brumadinho.
Populações de territórios vizinhos aos rompimentos de barragens, bem como aqueles que sofrem com os danos da lama invisível, têm apresentado demandas igualmente emergenciais em relação aos cuidados com a saúde mental. A comunidade de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto/MG que é próximo à Marina, vem sofrendo, desde 2015, os impactos do rompimento de Fundão e, desde 2019, com o medo de rompimento e os danos causados pelas obras de descomissionamento da Barragem Doutor, da Vale.
Sem participação, não há reparação!
Os caminhos para a reparação passam, primordialmente, pelo protagonismo das pessoas atingidas, o que no direito tem relação com o “princípio da centralidade do sofrimento da vítima”. Pensando nisso, o Instituto Guaicuy, Assessoria Técnica Independente de Antônio Pereira, conversou com a psicóloga Janaína Moraes, que trabalha na Rede Conviver. Trata-se de um equipamento público que resulta de uma conquista da população atingida de Mariana e compõe a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município desde 2016, com foco no cuidado à saúde mental das famílias atingidas pela Barragem de Fundão.
Reabilitação da saúde mental é processo continuado
Diante de um cenário de devastação sem precedentes, em 2015, a rede de atenção psicossocial de Mariana precisou realizar ações emergenciais de apoio à saúde mental da população atingida. A partir da pressão causada pela luta dessas pessoas, que tiveram suas vidas completamente mudadas por uma situação traumática, foi feito um acordo entre a Samarco e a prefeitura de Mariana.
Segundo Janaína Moraes, no acordo a Samarco é a parte responsável pelo crime, que deve, portanto, “ter uma responsabilidade financeira para essa reparação”, já a prefeitura é a parte responsável por criar e gerir, através de políticas públicas, o plano de atenção à saúde da população atingida. Foi assim que, em janeiro de 2016, surgiu o Conviver, com uma equipe composta por “profissionais responsáveis por estudar, pensar, planejar e ofertar o serviço em saúde mental para as pessoas atingidas pela barragem”, nos conta a psicóloga.
Ter uma equipe multidisciplinar especializada em saúde mental da população atingida em Mariana é parte do processo de reabilitação. Nesses oito anos, os danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão se estendem e intensificam com a morosidade do processo de reparação, que é responsabilidade das mineradoras.
Assim, de acordo com Janaína, “para além do rompimento da barragem, que já foi um evento muito forte na vida das pessoas, as consequentes violações de direitos, os conflitos que acontecem em decorrência desse processo, todos esses acontecimentos podem causar sofrimento”. Nesse sentido, o trabalho com a saúde mental deve ser continuado. “Cuidar para que as pessoas consigam lidar com esse contexto, que é complexo, é fundamental”, destaca a psicóloga do Conviver.
Saúde mental é um assunto sempre delicado e, em contexto de conflito socioambiental, isso se agrava ainda mais, pois envolve dores e subjetividades feridas por atores econômicos e políticos muito poderosos, com capacidade de incidência direta nas mais diversas esferas do poder. Por isso, as lutas e conquistas das populações atingidas precisam ser sempre destacadas, a fim de gerar precedentes em termos de reparação de direitos e reabilitação da saúde dessas populações. Para Janaína, “o Conviver pode ser uma inspiração para outras comunidades. Ter profissionais que pensam a realidade de cada lugar e que elaborem estratégias a partir dessa realidade, considerando a necessidade de cada contexto.”
Confira a entrevista completa.
IG: Como surgiu o Conviver e qual o papel dele na cidade de Mariana?
Janaína: Quando houve o rompimento da Barragem de Fundão, em novembro de 2015, a rede municipal de Mariana se mobilizou para atender as muitas demandas que surgiram, foi uma mudança muito grande. Logo se percebeu a necessidade de reforço para as ações que a prefeitura ofertava. Foram elaborados alguns planos de ação da saúde, que contemplam várias frentes.
Especificamente vou falar do Conviver, que é do plano de saúde elaborado para cuidados de saúde mental das pessoas atingidas. Nesse plano, foi feito um acordo entre a Samarco – responsável pelo crime, que deveria ter uma responsabilidade financeira para essa reparação – e a prefeitura, que seria responsável, através de políticas públicas, pela aplicação do plano, por pensar e fazer toda gestão desse trabalho. Então, a prefeitura elaborou esse projeto e contratou um número de profissionais que seriam responsáveis por estudar, pensar, planejar e ofertar o serviço em saúde mental para as pessoas atingidas pela barragem. Esses profissionais iniciaram seu trabalho em janeiro de 2016. Essa equipe, que tem o nome de Conviver, é quem pensa e executa as ações em saúde mental para a população atingida.
IG: Quais os serviços ofertados pelo Conviver para a população atingida?
Janaína: Os serviços ofertados pelo Conviver, diretamente à população, contemplam atendimentos individuais e atendimentos em grupo. Atualmente temos um cafezinho com música, que é uma vez por mês, um grupo de adolescentes, mas já tivemos várias atividades ao longo do tempo.
O trabalho do Conviver é muito dinâmico, porque o contexto traz muitas demandas, então a gente vai adaptando as ofertas de acordo com as necessidades que verificamos no momento. Temos também articulações com as escolas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, com a UBS, com a rede de desenvolvimento e assistência social e com toda a rede que, de alguma forma, oferece algum apoio aos atingidos pela barragem. A gente sempre busca manter essa articulação. Em alguns momentos participamos das reuniões da Comissões de Atingidos, fazemos contatos com o Jornal A Sirene e com a Cáritas (ATI de Mariana).
Sempre que a gente percebe que esse trabalho pode ser potencializado através de parcerias, buscamos desenvolver essas parcerias para contemplar, o máximo possível, as necessidades que observamos da população atingida. Então, além dos atendimentos ofertados diretamente, tem esse trabalho intersetorial que a gente considera de extrema importância por entendermos que é um contexto complexo, cheio de impactos para as pessoas. A gente busca desenvolver as ações mais adequadas para cada necessidade especificamente.
IG: Qual a importância dos cuidados com a saúde mental das pessoas atingidas?
Janaína: O cuidado da saúde mental das pessoas atingidas se faz necessário para amenizar as dores e sofrimentos em decorrência das violações que ocorrem cotidianamente. Para além do rompimento da barragem, que já foi um evento muito forte na vida das pessoas, as consequentes violações de direitos, os conflitos que acontecem em decorrência desse processo, todos esses acontecimentos podem causar sofrimento. Então, cuidar para que as pessoas consigam lidar com esse contexto, que é complexo, é fundamental.
O cuidado com a saúde mental pode ajudar tanto a cuidar dessas dores e desses sofrimentos, como também a prevenir que outros sofrimentos possam acontecer, que as pessoas adoeçam, pois temos essa função de prevenção também. Além da promoção da saúde, do bem-estar para que as pessoas se fortaleçam e possam lidar com esse cotidiano, que é muito pesado, de luta, de muitas atividades e muitas mudanças na vida. Essas pessoas passam, cotidianamente, por situações novas em que elas precisam desenvolver estratégias para lidar. Então, cuidar da saúde mental as fortalece para lidar com esse cotidiano que é muito pesado.
IG: Você considera que o Conviver é um tipo de iniciativa que possa ser replicada em outros territórios atingidos pela mineração? Qual seria o caminho a percorrer para essa conquista?
Janaína: O Conviver foi pensado para responder a uma demanda que não existia antes no município. Uma situação nova, que provoca muitas mudanças, então entendendo que essas mudanças precisam ter um olhar atento e específico para que sejam pensadas e elaboradas as melhores ações.
Nós consideramos que é importante ter pessoas, ter profissionais com este olhar atento, que tenham atenção a essa especificidade. Porque, se esses profissionais não tiverem um olhar atento, não perceberem o quanto esse contexto impacta na saúde das pessoas, pode passar muita coisa despercebida e esse sofrimento pode ser intensificado.
Nesse sentido, a gente considera que o Conviver pode ser uma inspiração para outras comunidades. Ter profissionais que pensam a realidade de cada lugar e que elaborem estratégias a partir dessa realidade, considerando a necessidade de cada contexto. Então a gente entende que o que cada região tem o seus impactos específicos e que o trabalho precisa ser construído a partir dessas necessidades.
O que você achou deste conteúdo?