“A gente fica muito preocupado. Não pode plantar porque não tem água, não pode pescar. E a gente não tem como sobreviver sem isso, sem este pagamento emergencial. Ele, pelo menos, garante a sobrevivência da pessoa no lugar em que ela está. Ele garante, pelo menos, sobreviver. Senão, a pessoa é obrigada a ir embora. Como ela vai ficar sem comer direito, sem pagar luz, água?”
Este relato é de Marcone Leão, que é pescador profissional, tem 46 anos e mora em Angueretá, distrito de Curvelo (MG). Ele recebe o auxílio emergencial, que é pago a parte das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Córrego do Feijão, que estava localizada em Brumadinho (MG). O desastre ocorreu em 25 de janeiro de 2019, provocou a morte de 270 pessoas e uma série de impactos sociais e ambientais que ainda estão sendo mensurados. A imensidão e complexidade da destruição causada pelo crime da mineradora perpassa diversos territórios mineiros, tornando árdua a mensuração dos estragos.
Com a lama e os prejuízos, também vieram os sentimentos de revolta e de urgência em se fazer justiça.
“Muitos perderam direito a várias coisas, entre elas, o direito a conviver nos seus territórios. Temos pescadores que a renda deles vinha dos ecossistemas aquáticos. E agora? A gente está falando de toda a Bacia do Paraopeba. A bacia do Paraopeba encontra lá com a represa de Três Marias. A água vai levando seus contaminantes. A água contaminada está retirando a organização das pessoas”.(…) Elas perderam água limpa. É fundamental que essa reparação entre com tratamento da água. Elas perderam água para a agricultura. Como vão alimentar seus animais?”. Nessa fala, a coordenadora de metodologias participativas do Instituto Guaicuy, Ângela Gomes, traz a importância de se reivindicar a reparação dos danos materiais, mas de reivindicar também a reparação dos danos imateriais que acometeram as comunidades.
O caminho da reparação dos danos causados pelo estouro da barragem da Vale tem diversas ferramentas e etapas, de curto, médio e longo prazo – todas elas construídas pelas pessoas atingidas, com suporte das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) e das Instituições de Justiça (IJs). As IJs são o Ministério Público e a Defensoria Pública de Minas Gerais e representam as vítimas no processo judicial. A primeira etapa da reparação é o acesso ao pagamento emergencial. Determinado pela Justiça, no momento, trata-se de um valor pago pela Vale à parte das pessoas que se cadastraram junto à mineradora até novembro de 2019.
Para Ângela Gomes, o emergencial é importante para manter a dignidade das pessoas, até para que elas tenham condições de lutar pela reparação integral. “Antes de mais nada, é preciso tratar atingido com o máximo de respeito. Quem fala que é atingido sabe que é atingido. É uma vítima de uma tragédia como essa. Se é uma vítima, ele tem que ter garantido que sua condição de vida seja retomada. É urgente que ele tenha pelo menos condição de se alimentar, de comprar um remédio para permanecer vivo”, pondera.
Cerca de um mês após o rompimento da barragem sobre o Rio Paraopeba, a Justiça determinou que a Vale providenciasse pagamento emergencial a todos os habitantes de Brumadinho e a todas as pessoas que morassem a uma distância de até um quilômetro da calha do Rio Paraopeba. Esse critério territorial levava em conta o impacto econômico do desastre na região.
Quando o Instituto Guaicuy e as demais Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) foram eleitas, o pagamento emergencial e seus critérios iniciais já estavam postos por decisões tomadas dentro do processo judicial. Também já havia uma data para o fim desse auxílio: janeiro de 2020. Em audiência no dia 28 de novembro de 2019, foi determinada pela Justiça a prorrogação do pagamento até outubro de 2020.
De acordo com a advogada popular do setor jurídico do Instituto Guaicuy, Paula Constante, os valores do emergencial variam. “No início, o pagamento era de um salário mínimo mensal por adulto, meio salário mínimo mensal para cada adolescente e ¼ de salário mínimo mensal para cada criança. Na audiência do dia 28 de novembro de 2019, quando houve a prorrogação do pagamento do emergencial, ficou estabelecida a manutenção do valor para as pessoas que residiam nas comunidades de Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira, Alberto Flores, Cantagalo, Pires e nas margens do Córrego Ferro-Carvão. Para as demais pessoas que recebiam, o valor foi reduzido pela metade. Em resumo: na região 4 ficaram estabelecidos os valores de meio salário mínimo para cada adulto, ¼ de salário mínimo para cada adolescente e ⅛ de salário mínimo para cada criança. Por exemplo: uma pessoa adulta, na área 4, recebe, hoje, o equivalente a R$ 522,50”.
De acordo com Ângela Gomes, esse auxílio é só um primeiro passo na caminhada coletiva rumo à reparação integral. Ela reflete que as pessoas atingidas perderam bens e dinheiro, mas perderam muito mais que isso. E que somente elas podem dimensionar esses danos, e, por isso, é importante que se apropriem das Assessorias Técnicas como ferramenta de empoderamento. “O emergencial é uma pequena política de reparação diante do quadro da reparação maior que é necessária. O dano tem uma dimensão que nem a ciência que está aí pode dizer que pode quantificar. Mas as pessoas, a fala das pessoas chega muito mais próximo de uma matriz de danos. Essas falas são capazes de reconstituir os bens imateriais que elas perderam, que não é bobagem, pois pessoas não são feitas só de renda”, afirma Gomes.
Marcone conta que o rompimento da barragem causou perdas financeiras à sua família, mas também provocou perdas que extrapolam a lógica econômica, que são impossíveis de precificar. “Quando a barragem rompeu eu estava com o terreno todo plantado com abóbora, pepino e maxixe. Isso me daria uma renda, se eu tivesse uma produção razoável, de uns R$ 25 mil. Isso colocando por baixo”, relembra.
Além do auxílio emergencial, a Justiça também determinou que a Vale fornecesse água às pessoas atingidas que necessitassem, para consumo e atividades produtivas, como irrigação de cultivos. Marcone é uma dessas pessoas. No entanto, segundo ele, a mineradora interrompeu o abastecimento por duas vezes e ainda não retornou, o que provocou e segue provocando ainda mais prejuízos.
“Eu estava com um tanque de 300 mil litros escavado. Eu armazenava água para irrigação e ia criar tilápia. E agora está me dando prejuízo. Se eu estivesse com o tanque cheio, de seis em seis meses me daria uns R$ 15 mil. São vários prejuízos que a gente tem. (…) Eu tinha um sonho que era a criação de peixe aqui. É até difícil lembrar de tudo. Já perdi árvores de caju que morreram por causa da falta de água. Tem coisa que a gente pega amor, estima e acaba perdendo. Tinha 1.500 pés de pimenta e estava colhendo 250, 300 quilos de pimenta por semana. Perdi os 1.500 pés de pimental porque [a Vale] ficou sem me fornecer água uns três meses”. (…) “Nós somos pescadores profissionais. Sempre vivemos de pesca e agora não posso mais pescar no rio. Meu pai veio morar comigo mais por causa da pesca. A gente sempre gostou mais de pescar em rio que em represa. Eu comprei o terreno, vim pra cá e agora a gente não pode fazer o que gosta, o que sempre fomos apaixonados. Não temos mais a renda e não podemos mais contar com o rio pra nada. Nem lazer, esporte, nem pra puxar água do rio para irrigar. (…) A gente vai perdendo o amor pelas coisas”, lamenta.
O processo de cadastramento e pagamento desse auxílio foi conduzido pela Vale, que ainda não forneceu acesso amplo e direto aos dados relacionados ao pagamento emergencial. A mineradora afirmou, em relatório encaminhado à Justiça na última terça-feira (14), que, no ano de 2019, 106 mil pessoas receberam o auxílio. Ainda segundo documento apresentado pela empresa, desde o rompimento da barragem, um total de 130 mil pessoas se registraram para solicitar o pagamento emergencial. Ou seja, cerca de 24 mil pessoas, ou 18% do total de pessoas que se declararam como atingidas, foram desconsideradas pela empresa e não receberam o auxílio e nem a explicação, por parte da Vale, do motivo pelo qual o pagamento foi recusado.
Para além disso, segundo a advogada popular Paula Constante, o próprio critério inicial, que ainda prevalece, levava em conta apenas o território e acabou deixando muitas pessoas de fora. “O critério atual se mostra inadequado, pois ele desconsidera as singularidades e coletividades territoriais, as cadeias produtivas, as economias diversas, os modos de vida e cultura das pessoas atingidas; desconsidera também as comunidades rurais, tradicionais e assentamentos. Além disso, ele parte da lógica de só quem estava a um quilômetro da beira do rio [Paraopeba] precisa do pagamento. Assim, por exemplo, se uma família está a 1.200 metros da beira do rio, ela tem o pagamento emergencial negado, mesmo que antes do rompimento utilizasse o rio para absolutamente todas as atividades cotidianas”, conclui.
É o caso de alguns vizinhos de Marcone. “Muitas pessoas estão a um quilômetro e pouco [de distância do Rio Paraopeba], moram perto do rio, elas não recebem e eu recebo”.
Casos como esse aparecem desde o início das reuniões que o Instituto Guaicuy tem realizado com as pessoas atingidas. Elas começaram a ocorrer no segundo semestre de 2019, quando o Instituto foi eleito para prestar assessoria técnica às pessoas das áreas 4 e 5. É o que confirma a advogada popular Paula Constante: “a realidade que temos constatado junto às pessoas atingidas da área 4* é de muita negligência e de aumento contínuo de cortes injustificados. A região 5* sequer recebe o pagamento emergencial”.
Foi definido pela Justiça que, a partir de outubro de 2020, o pagamento emergencial, do modo como existe atualmente, vai terminar. Em setembro do ano passado, o juiz Elton Pupo, da 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte, determinou que sejam apresentados critérios mais precisos para identificar os atingidos que vão continuar recebendo o pagamento do emergencial com base no critério territorial.
Está em disputa a construção de um novo auxílio que deve ter outro nome e que vai considerar novos critérios, que ainda serão definidos. O levantamento dos novos critérios começou a ser realizado pelo Instituto Guaicuy e pelas pessoas atingidas nos territórios. Por conta da pandemia do novo coronavírus, os planos de trabalho foram reelaborados e os encontros seguiram e seguem ocorrendo por meio de plataformas virtuais. Para levar as demandas das pessoas atingidas à Justiça, o Guaicuy também vem participando de reuniões de articulação com as ATIs dos outros territórios afetados, com as instituições de Justiça e com a Coordenação e Acompanhamento Metodológico e Finalístico (PUC Minas).
É a partir desse trabalho coletivo, junto com as pessoas e comunidades atingidas, que será possível apresentar ao juiz critérios que sejam mais justos e que considerem que as comunidades foram acometidas de formas diferentes e com intensidades distintas. A participação das pessoas atingidas na construção desse documento é essencial para pressionar pela aprovação desses novos critérios pela Justiça.
O objetivo, como reforça a advogada Paula Constante, é que o documento possa representar desejos coletivos de reparação. “São as pessoas atingidas que nos fornecem os dados, os critérios, que possuem a vivência do território. São delas e por elas a demanda. São elas que determinam o que é uma reparação integral plena. Acreditamos que é delas o lugar de fala sobre as violações e violências sofridas nesse processo. Evidentemente que as instituições de justiça, em especial o Ministério Público e a Defensoria Pública, são essenciais como ferramentas para a realização do direito, bem como o papel das ATIs ao subsidiar as discussões, junto às pessoas atingidas, de forma responsável, administrando desejos, possibilidades e realidade”.
Reportagem: Fernanda Brescia. Edição: Ennio Rodrigues e Bernardo Amaral. Infográficos: Bernardo Amaral
Conheça os Planos de Trabalho da Assessoria Técnica nas Áreas 4 e 5 do Paraopeba
O que você achou deste conteúdo?