Instituto Guaicuy

“Quero minha vida de volta”

20 de julho, 2020, por AMICD

As consequências do rompimento da barragem da Vale sobre o rio Paraopeba, em 25 de janeiro, ainda não foram totalmente mensuradas. Foram mais de 13 milhões de metros cúbicos de lama despejados sobre o leito, que levou à morte de 257 pessoas e 13 desaparecidos. Além disso, impactos sociais, ambientais e econômicos que se espalham por todo o curso do rio, pelo menos, até a barragem de Três Marias (MG). Atingidos são aqueles que sobreviveram nas imediações do rompimento, mas também moradores dos municípios de Curvelo, Pompéu, Felixlândia, Morada Nova de Minas e Três Marias.

Patrícia*, por exemplo, é produtora rural, tem 37 anos e vive na comunidade de Cachoeira do Choro, no município mineiro de Curvelo. Do rio Paraopeba, ela retirava água para a produção de frutas que comercializava, além de produzir geleias e doces para vender. “A vida boa era: plantar, cultivar, colher e produzir”, conta. Dessa labuta, junto com os trabalhos temporários do marido, como pedreiro local, vinha o sustento da família.

Hoje, ela é uma das milhares de pessoas que foram atingidas pelo rompimento. Apesar de estar a mais de 200 quilômetros de distância de onde a estrutura da mineração rompeu, a lama tóxica despejada sobre o rio mudou sua rotina.

Além do rejeito, vieram o receio das informações imprecisas sobre a qualidade da água, a queda no movimento turístico da região, a incerteza sobre a segurança de seguir vivendo no mesmo lugar, se alimentar dos mesmos animais, dentre tantas outras transformações indesejadas.

Essa é uma realidade compartilhada entre Patrícia e Antônio*. Ele vive há 20 anos na região de Ilha do Mangabal, zona rural de Felixlândia (MG). Nesse tempo, sempre viveu davenda dos peixes da represa de Três Marias. “A gente chegava a pescar dezenas e dezenas de quilos de uma vez. Agora, caiu muito e, quando pesca, não consegue vender”, conta o pescador.

Segundo nota oficial do Instituto Estadual de Floresta (IFE) de Minas Gerais, divulgada em março de 2019, não foi identificada a presença de rejeitos na represa de Três Marias após o rompimento. O material teria ficado retido na Usina Hidrelétrica (UHE) de Retiro de Baixo, na cabeceira do reservatório. Entretanto, o tragédia deixou a população receosa, notícias falsas se disseminaram e a queda na demanda foi sentida por Antônio e os companheiros pescadores da região.

Além disso, a chegada final do ano traz novas incertezas. Mesmo com o rejeito depositado no fundo da UHE de Retiro de Baixo, as águas do rio devem ser movimentadas pelo fluxo das chuvas típicas do período. A abertura das comportas da UHE também levanta dúvidas sobre a qualidade da água da represa de Três Maria nos próximos meses.

Prejuízo de todos, lucro da Vale
Enquanto atingidos enfrentam dificuldades para terem reparação total, a Vale, mineradora condenada pelo rompimento, registrou faturamento de R$ 40, 7 bilhões, com lucro líquido de R$ 6,5 bilhões. O resultado foi 13,7% melhor do que em 2018, antes do colapso da barragem.

Em busca de justiça
Pelo rompimento, a Vale tem respondido a um processo judicial desde o dia 30 de janeiro e, em julho, foi condenada a reparar todos os danos relacionados ao crime. À época, o juiz da 6ª Vara de Fazenda Pública e Autarquias da capital, Elton Pupo Nogueira não fixou um valor a ser pago, pois não era possível dimensionar o prejuízo.

De acordo com ele, a tragédia “não se limita às mortes decorrentes do evento, pois afeta também o meio ambiente local e regional, além da atividade econômica exercida nas regiões atingidas”.

As Assessorias Técnicas Independentes
Para chegar a uma sentença justa, que garanta a reparação total de todos os atingidos e as atingidas, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) dividiu o curso do rio Paraopeba em cinco regiões e estabeleceu que cada comunidade elegesse uma entidade para realizar Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) nos locais.

As ATIs ficariam responsáveis por “garantir o direito à informação, inclusive técnica, às pessoas atingidas, em linguagem adequada às características socioculturais e locais, bem como possibilitar a participação informada nos processos de reparação integral dos danos decorrentes do rompimento”, segundo MPMG.

Três instituições foram eleitas: Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS), Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (NACAB) e o Instituto Guaicuy, do qual o Manuelzão faz parte. O Guaicuy foi eleito para assessorar as áreas 4 (Pompéu e Curvelo) e 5 (Felixlândia, Morada Nova de Minas e Três Marias).

Em uma das reuniões como Assessoria Técnica Independente, na cidade de Morada Nova de Minas, uma das presentes sintetizou o sentimento de quem tem luta por justiça: “Quero minha vida de volta”.

As Assessorias Técnicas Independentes são um direito conquistado pelas pessoas atingidas para alcançar a reparação integral dos danos causados pelo rompimento – Foto: Acervo Manuelzão

Batalha jurídica
A luta pela garantia da reparação total não tem sido fácil. Mais de dez meses após o rompimento, muitas famílias não têm recebido os auxílios emergenciais determinados pela Justiça e os Planos de Trabalho elaborados pelas ATIs seguem sendo questionados pela Vale.

Até a definição de quem é considerado atingido está em debate. A mineradora defende que o atingido é quem vive a, no máximo, um quilômetro da margem do rio. Entretanto, as ATIs têm verificado que essa definição não é suficiente.

“É preciso pensar uma definição que não se esqueça dos sujeitos e suas relações com o meio ambiental, social e econômico”, explica a coordenadora da Assessoria Técnica do Guaicuy, Carla Wstane. As consequências da lama tóxica são complexas. Com a interdição do rio, pescadores não podem pescar, turistas deixam de frequentar as regiões. Os resultados, além das vidas humanas, animais e vegetais ceifadas, toda uma cadeia produtiva e uma tradicional organização cultural foram impactadas.

Em novembro, audiências judiciais aconteceram para estabelecer o pagamento dos auxílios emergenciais a todos os que precisam, no dia 21, e para demonstrar a relevância das ATIs, no dia 28.

Em relação ao auxílio, a Justiça determinou que continuasse sendo pago por mais dez meses a todos os que receberam até aqui. Entretanto, novos critérios foram estabelecidos. Os moradores das comunidades de Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira, Pires, Cantagalo, Alberto Flores – as comunidades que beiram o Córrego do Carvão – seguem recebendo o mesmo valor. Aqueles que estão nos programas sociais da Vale, como recebimento de água, aluguel e auxílio agricultura também estão nesse grupo. Porém, os demais atingidos terão o auxílio reduzido pela metade.

Já em relação às Assessorias Técnicas Independentes, o juiz determinou adaptações nos Planos de Trabalho que busquem evitar replicações de estudos que serão feitos pela Comissão Técnica e levando-se em consideração um prazo de dois a três anos para a atuação nas áreas.

Assessoria Técnica como garantia de Direitos Humanos
Em 2018, a organização internacional Conectas Direitos Humanos, publicou um dossiê
intitulado “Uma proposta de reforma de governança para remediação do desastre do Rio
Doce”, a respeito do rompimento da barragem da Vale sobre o rio Doce, em novembro de 2015. No documento, a ONG deixa clara a importância das assessorias técnicas para
atingidos e atingidas, em crimes como esses:

“De acordo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, indivíduos que sofrem graves violações não devem ser vistos apenas como receptores de medidas de reparação, devendo também participar ativamente da criação, avaliação e operação desses mecanismos. Isso é particularmente importante em casos de violações de direitos humanos cometidas por empresas, tendo em vista a necessidade de equilibrar as assimetrias existentes entre elas e as pessoas atingidas. É importante, ainda, que a participação ocorra antes mesmo do início da implementação das medidas de reparação, para que as partes apontem conjuntamente qual será o modelo de reparação adotado. Portanto, às pessoas atingidas deve ser dada a oportunidade de efetivamente influenciar a concepção e execução dos processos de remediação e de determinar quais medidas são adequadas para reparar toda a gama de danos por elas sofridos. Para que essa participação seja livre e informada, as comunidades atingidas também devem ter pleno acesso a informações relevantes sobre os danos por elas sofridos, mecanismos de reparação disponíveis, bem como sobre todos os recursos jurídicos, médicos e psicológicos existentes”.

*nomes fictícios

Matéria originalmente publicada na Revista Manuelzão nº 86. Para ler a edição na íntegra, clique aqui.

Gostou do conteúdo? Compartilhe nas redes sociais!

O que você achou deste conteúdo?

O seu endereço de e-mail não será publicado. Todos os campos são obrigatórios.

Ao comentar você concorda com os termos de uso do site.

Assine nossa newsletter

Quer receber os destaques da atuação do Guaicuy em primeira mão? Assine nosso boletim geral!