Reconhecimento e participação são principais reivindicações em audiência pública sobre impactos do rompimento da barragem de Fundão, realizada na Escola Estadual Professora Daura de Carvalho Neto, em Antônio Pereira (MG), com a presença de representantes do Governo Federal e de deputadas e deputados estaduais e federais.
“A gente precisa urgentemente que 100% das pessoas de Antônio Pereira sejam reconhecidas como atingidas, tanto pela Vale quanto pela Samarco e Fundação Renova!” Essa afirmação do atingido Bruno Saback, durante a audiência pública realizada na última sexta (05), sintetiza a principal reivindicação da comunidade em relação à repactuação do acordo para a reparação dos danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão, desde o dia 05 de novembro de 2015. Ronald Guerra, coordenador do Instituto Guaicuy no projeto da Assessoria Técnica Independente (ATI) de Antônio Pereira também destaca: “Todos aqui são atingidos duplamente, primeiro com o rompimento da Barragem de Fundão e depois com o descomissionamento da Barragem Doutor”.
Bruno é uma das centenas de pessoas de Antônio Pereira que sofreram deslocamento compulsório em razão do risco de rompimento da Barragem Doutor, da Vale. Mas o sofrimento e os conflitos socioambientais decorrentes da mineração predatória foram instaurados no território muito antes de essas famílias terem noção do que significa zona de autossalvamento (ZAS). A luta da comunidade é tamanha, que mesmo quem perdeu tudo no rompimento de Fundão, que é o maior desastre-crime socioambiental da história do Brasil, se solidariza com as pessoas do distrito de Ouro Preto. “Nós somos vizinhos e dói o coração ver a luta desse pessoal que sofre mesmo antes do rompimento da Barragem de Fundão. Sofre com o descaso das mineradoras para com Antônio Pereira. Já morei aqui e a gente vê que é uma comunidade sofrida e guerreira”, destaca Antônio Pereira Gonçalves, conhecido como Dalua, representante do distrito Bento Rodrigues na Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão de Mariana (CABF).
Com uma fala politicamente importante, Dalua faz refletir sobre a amplitude dos danos causados pelo rompimento da barragem desde 2015, que destruiu completamente sua comunidade, mas que também gerou impactos negativos em muitas outras comunidades do entorno. “Do mesmo modo acontece com os distritos Cachoeira do Brumado e Santa Rita Durão. Sei o quanto foram impactados de uma forma geral e até hoje não foram reconhecidos, assim como outros distritos”.
Garimpeiros tradicionais têm presença expressiva na audiência
A luta por reconhecimento e por reparação integral também deu o tom às falas das garimpeiras e garimpeiros tradicionais presentes na audiência. “Nosso garimpo é tradicional, veio dos antigos. A Vale tomou nossa comunidade, estamos encurralados, não temos direito de ir e vir, de garimpar, a Vale manda a polícia nos prender sem um plano de reparação para os garimpeiros”, denuncia Dona Ivone Pereira Zacarias, vice-presidente da Associação dos Garimpeiros de Antônio Pereira.
Ela conta que no dia nove de maio de 2022 a polícia foi chamada pela mineradora para autuar e prender as garimpeiras e garimpeiros que tentavam voltar a trabalhar na região. Sua bateia, ferramenta usada para garimpar, que é herança de família, foi apreendida. Até hoje o instrumento, que tem valor afetivo e de trabalho, não foi devolvido pela polícia, que criminaliza a tradição tão cara à dona Ivone e às centenas de garimpeiras/os em Antônio Pereira e ao longo de toda a bacia do Rio Doce. “Nós fomos criados no garimpo, essa é a nossa tradição, não é justo que a Vale chegue tirando tudo de nós”, afirma a garimpeira que conclama: “Olha nosso sofrimento! O estado que a nossa comunidade se encontra. A Vale não vai nos calar, nós somos guerreiros e garimpeiros!”.
Onofre Carmo, garimpeiro tradicional de Antônio Pereira, nomeia as empresas e a fundação que têm gerado diversos danos à comunidade. “Aqui nós viemos falar sobre o garimpo tradicional, nós trabalhamos e lutamos num Antônio Pereira que foi isolado. A Vale, a Samarco, a BHP e a Renova não querem saber das pessoas, das vidas que desceram pela lama e das famílias que vivem no sofrimento”.
Reconhecendo a diferença entre o garimpo ilegal, que tem destruído comunidades tradicionais e o meio ambiente no Brasil, e o garimpo tradicional realizado historicamente na Região dos Inconfidentes, Cleiton Gonçalves, garimpeiro tradicional de Antônio Pereira questiona: “Por que não traz gente para vir conversar com a gente? Para ver como a gente tira o ouro sem destruir a natureza? Mas manda a polícia atrás da gente?” e completa: “Nós somos tratados como os outros garimpeiros lá de fora, mas nós somos humildes, garimpeiros e faiscadores. Enquanto tem muitas empresas destruindo mata, derrubando árvores verdes, nós não temos mais o lazer, não podemos buscar lenha seca para economizar o gás, a gente não pode pescar nem garimpar, isso é muito errado!”. Ele relata a importância do garimpo tradicional frente à vulnerabilidade financeira e social de Antônio Pereira desde o rompimento de Fundão, quando muitas pessoas ficaram sem emprego na comunidade. “Essa é a fonte de renda do nosso lugar. Muitas tradições nossas vêm sendo abatidas”.
Audiência Pública em Antônio Pereira teve como propósito ouvir a população atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão, das mineradoras Samarco, Vale e BHP. O debate girou em torno dos impactos socioambientais na bacia do Rio Doce e dos danos nas condições de vida da população local. Realizada pela Comissão Extraordinária de Acompanhamento do Acordo de Mariana, da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALMG), a audiência pública contou com a presença dos deputados estaduais Ulysses Gomes (PT), Beatriz Cerqueira (PT), Professora Macaé Evaristo (PT), Bella Gonçalves (PSOL) e Leleco Pimentel (PT). Além dos deputados federais Rogério Correia (PT) e Padre João (PT) e dos representantes do Governo Federal Mariana Barbosa Cirne, da Advocacia-Geral da União, Luíza Borges Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência da República, e Paulo Clemente, do Ministério do Desenvolvimento Social.
A audiência ocorreu após requerimentos do deputado estadual de Minas Gerais, Leleco Pimentel (PT) que cobrou ações emergenciais. “Já são sete anos de prejuízo na vida daqueles que foram excluídos desse atingimento direto do crime. Portanto, nós tivemos responsabilidade no desenho dessas visitas e audiências públicas, bem como para os encaminhamentos dessa comissão especial que agora tem que dar cabo dessa leitura, da síntese e de tentar influenciar na agenda para que os atingidos tenham voz e vez na repactuação”.
Já na abertura da audiência, o relator e presidente da comissão, Ulisses Gomes, declarou: “estamos aqui por uma repactuação à altura da esperança de cada um e cada uma”. A deputada Beatriz Cerqueira destaca uma das grandes conquistas na luta pela reparação. “Me lembro de quando fizemos a audiência, ainda lutamos e cobramos o direito à assistência técnica aqui no território, que hoje é uma realidade”, e destaca a importância da continuidade dessa luta. “As mineradoras, além de tentarem fazer com que a gente desista pelo cansaço, também tentam nos fazer brigar entre nós. Então é importante a gente dizer que todos os territórios são importantes”.
Os três representantes do governo federal reforçaram a importância da escuta às pessoas atingidas para a efetividade do novo acordo. “Estamos aqui para escutá-los. É só o primeiro passo para a gente decidir as coisas com a participação da comunidade”, afirma Mariana Barbosa Cirne, representantes da Advocacia-Geral da União. “Não pode ter política pública sem ouvir vocês”, diz Paulo Clemente, do Ministério do Desenvolvimento Social. “A gente não vai dar um passo neste acordo sem escuta da sociedade”, conclui Luíza Borges Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência da República.
A repactuação é um processo de renegociação dos acordos extrajudiciais firmados no passado, como o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), também conhecido como “acordão”, firmado em março de 2016, que estabeleceu 42 programas de reparação e instituiu a criação da Fundação Renova. Feito sem a participação das pessoas atingidas, ainda hoje, mais de sete anos depois do rompimento da barragem de Fundão, o acordo não resultou em reparação de fato. Isso porque as mineradoras, por meio da Fundação Renova, seguem descumprindo os tratados sem que haja qualquer punição por isso. O deputado federal Rogério Correia comenta essa situação. “Se está repactuando é porque o pacto anterior não consultou a comunidade e não teve efetividade. Tem uma comissão na Câmara para fiscalizar o acordo de Brumadinho e a repactuação de Mariana. Vamos levar tudo pra lá”.
Desde 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) faz a mediação das tratativas para a realização de um novo acordo para a reparação dos danos causados pela Barragem de Fundão. As negociações envolvem representantes da Samarco, Vale e BHP, governos federal e estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, além dos Ministérios Públicos federal e estaduais dos dois estados.
Por Ellen Joyce Marques Barros
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