Autonomia, de acordo com o dicionário da língua portuguesa, significa a “capacidade de governar-se pelos próprios meios”. No processo de reparação dos danos violados pela Vale com o rompimento da barragem em Brumadinho, que afetou a bacia do Paraopeba, a região da Represa de Três Marias e comunidades do Rio São Francisco, é fundamental que as pessoas atingidas ocupem as arenas decisórias, exerçam o controle social de forma independente e participem efetivamente da reparação de tudo que foi perdido com o desastre-crime. A construção de autonomia será um dos temas dos Encontros de Comissões de Pessoas Atingidas das Regiões 4 e 5, realizados com integrantes das comunidades assessoradas pelo Instituto Guaicuy nos meses de agosto e setembro.
De acordo com Frederico Siman, assessor de organização social e comunicação do Guaicuy, este foi um dos temas escolhidos como guia do encontro para reafirmar a relevância do protagonismo das pessoas atingidas na luta pelos direitos violados com o rompimento da barragem. “Mas a condição de autonomia não é algo simples de ser construído, sobretudo em um contexto de institucionalidade historicamente excludente e elitista, como o do Brasil. Ela requer organização social e condições institucionais e materiais, o que envolve diversos atores, no caso do processo de reparação, e um tempo cuidadoso”, complementa.
Para fortalecer a organização dessas pessoas em suas comunidades e oferecer a elas condições de acessar informações na luta pelos direitos violados, o Guaicuy vem, desde 2022, focando sua atuação em colaborar para a construção das Comissões de Pessoas Atingidas pelo desastre-crime da Vale. As 34 instâncias locais organizadas hoje são compostos por pessoas das comunidades de Pompéu, Curvelo, Abaeté, Biquinhas, Felixlândia, Martinho Campos, Morada Nova de Minas, Paineiras, São Gonçalo do Abaeté e Três Marias, municípios que contam com a Assessoria Técnica Independente (ATI) do Instituto.
O principal papel das Comissões é fazer com que seus membros sejam multiplicadores da informação e da organização social em suas comunidades. A formação destes grupos tem o objetivo de criar espaços destinados à organização social e política das pessoas atingidas, sendo instâncias de participação local, podendo reunir uma ou mais comunidades. Idealizadas inicialmente pelas Instituições de Justiça (IJs), elas foram definidas como interlocutoras legítimas das pessoas atingidas no processo de reparação integral.
Assim, as Comissões buscam estabelecer um diálogo frequente com os atores externos da reparação: IJs, Governo do Estado de Minas Gerais, Fundação Getulio Vargas (FGV), entre outras. Isso é feito com o apoio do Guaicuy que, por meio das equipes de campo, orienta os caminhos para onde as reivindicações devem ser encaminhadas via ofício, por exemplo. “Ajudamos na construção desses documentos e no envio. A finalidade é que a reparação aconteça de acordo com o que as pessoas atingidas entendem que é melhor para suas Comissões e comunidades”, aponta Frederico.
Júlia Nascimento, gerente do Instituto Guaicuy, explica que as Comissões são uma aposta na força coletiva para que as pessoas atingidas possam se sentir fortalecidas para qualquer tomada de decisão e acesso à informação. “Buscamos, nas Comissões, abranger esse conceito de autonomia como a capacidade de ocupar espaços sobre a reparação para além: é também a capacidade de se comunicar com seus pares, com colegas de Comissão, com moradores da comunidade. É se apropriar da própria voz, mas também saber ouvir. Só assim, com um diálogo frequente, feito com respeito e de forma democrática, é possível representar tantas vozes frente à luta por tantos direitos violados pela mineração”, diz.
Júlia também sinaliza para a importância da representatividade na construção coletiva dessa autonomia. Para ela, é essencial haver uma rotatividade entre os integrantes das Comissões. “Além disso, incentivamos que sempre avaliem coletivamente se as comunidades estão se sentindo representadas por quem participa das Comissões. É preciso que haja confiança entre quem representa e quem é representado e isso só vem com o tempo”, avalia.
Alguns movimentos liderados pela organização das pessoas atingidas mostram a construção dessa autonomia. Em 2023, quando a Justiça estabeleceu o corte de recursos das ATIs que atuam no acompanhamento do processo de reparação das pessoas atingidas pela Vale, a articulação e a manifestação de representantes destas comunidades para a garantia do direito a Assessoria Técnica Independente. Outro exemplo foram as manifestações conjuntas organizadas pelas Comissões de Pessoas Atingidas com o objetivo de cobrar da FGV respostas sobre os cadastramentos e dificuldades no acesso ao Programa de Transferência de Renda (PTR). As pessoas atingidas pressionaram, por meio de ofícios e audiências públicas, as Instituições de Justiça e a FGV para que houvesse maior agilidade nesse processo. Por meio de um processo auto-organizado, os grupos de pessoas atingidas realizaram protestos, em Pompéu e Felixlândia, reivindicando o direito ao pagamento mensal.
Outro papel importante, no caso das Comissões, no exercício e na construção de sua própria autonomia foi na discussão da participação das comunidades prejudicadas pela Vale na execução do Anexo 1.1 do Acordo de Reparação, firmado em 2021 entre o Poder Público e a Vale. Essa parte do acordo determina que a Vale destine R$3 bilhões para projetos das comunidades atingidas, sendo R$1 bilhão para linhas de crédito e microcrédito. Tudo isso está dentro do que foi pensado pela Justiça para reaver os danos coletivos em função do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Atualmente, o Anexo 1,1 teve seu plano de ação aprovado pelas pessoas atingidas de toda a Bacia do Paraopeba.
Também houve oportunidades de representantes de Comissões de Pessoas Atingidas participarem de eventos importantes para a discussão da reparação. Alguns exemplos são a Audiência Pública do Conselho Estadual de Saúde de Minas Gerais, em Belo Horizonte, sobre a Política Estadual de Atingidos por Barragens e a participação das Mulheres no II Encontro de Mulheres Atingidas pelo Crime da Vale. Outros exemplos de como as Comissões vêm se articulando de forma compromissada são ações locais, nas comunidades onde atuam, como a realização de mutirões de limpeza na beira da Represa de Três Marias e reuniões com prefeituras locais.
Uma das principais tarefas do Instituto Guaicuy nas ações envolvendo as Comissões de Pessoas Atingidas é realizar o secretariado, ou seja, contribuir com a mobilização dos membros que integram esse espaço coletivo, garantindo o registro dos encontros com a memória de reunião, a lista de presença e o registro fotográfico. Além disso, cabe ao Instituto contribuir com a formação técnica e política dos integrantes. Outra tarefa de extrema importância é a atualização sobre todos os assuntos referentes ao processo de reparação, contribuindo para a participação informada de todas as comunidades atingidas.
Júlia ressalta que o processo de construção da autonomia, nesse contexto complexo de violação de direitos, acontece de forma progressiva e gradual. “Sabemos que as Comissões estão avançando nesse processo, mas ainda há muito o que caminhar. Ainda é necessário ampliar os diálogos, ampliar o alcance das discussões referentes à reparação dos danos causados pela Vale e consolidar a Instância Regional, que é o conjunto das Comissões”, explica.
Segundo a gerente, o Guaicuy, enquanto assessoria técnica, ajuda essas pessoas a criarem as regras e a dinâmica de organização das Comissões, assim como as próprias reuniões, com suas atas e encaminhamentos. “Daqui a um ano, quando o prazo de atuação das Assessorias Técnicas estiver chegando ao fim, talvez ainda esteja sendo necessário este apoio, porque a consolidação dessas organizações exige tempo e experiência. Também é importante lembrar que o processo de reparação ainda está muito atrasado: as medidas de indenização ainda não foram definidas, o PTR não chegou a todos que precisam, a reparação socioambiental está a passos lentos, o Anexo 1.1 não foi executado. Espera-se que a assessoria acompanhe o que foi definido pelo Acordo Judicial, mas sabemos que o tempo estipulado para a atuação das ATIs não é suficiente para esse acompanhamento ideal”, pontua.
*Crédito da imagem: João Carvalho/Instituto Guaicuy
O que você achou deste conteúdo?