Instituto Guaicuy

Histórias de Pescadores: Nós e o rio, o Rio em nós

2 de junho, 2021, por Comunicação Guaicuy

Texto da série Histórias de Pescadores. Eliana e Paulo moram em Cachoeira do Choro, mas desenvolviam a pesca profissional do trecho conhecido como Paraíso até a Lagoa do Meio, em Felixlândia.

Nas mãos do casal, o anzol usado para a pescaria do peixe conhecido como surubim. Foto: Tainara Torres/Instituto Guaicuy

Pacamã, surubim, mandi, dourado, curimatã, corvina, piaba. Nomes comuns para quem, há pouco mais de dois anos, podia ainda pescar no Paraopeba. Como no rio, quando há a euforia dos peixes, por aqui saltam as palavras quando o assunto é a vida no rio, lugar onde Eliana Marques e Paulo Leite mais se sentiam em casa antes do rompimento da Barragem em Brumadinho. O rio é o ponto de partida para onde as lembranças dos três se amarram feito nó. Eliana, Paulo e o Paraopeba.

A história que os dois contam sobre a pesca começa pelo adeus. Em 2019, quando rompeu a barragem da Vale, localizada a quase 200 quilômetros de Cachoeira do Choro, Eliana sabia que os rejeitos de minério demorariam cerca de três dias para chegar na comunidade do Choro. Mas ela partiu do pretexto da rotina, e, seguindo essa lógica, era certeiro que o marido, o filho e o neto estavam à beira do rio. Faltou ar. Foi quase impossível não sentir uma dor que mais parecia a de uma apunhalada no peito. Era muito medo para assimilar em um espaço curto de tempo.

No dia do rompimento eu não estava na comunidade. Quando voltei [um dia depois] vi que ainda não tinha rejeito no rio , fiz então o convite para o meu neto: vamos tomar um banho de cachoeira antes da lama chegar? Fomos no lugar de sempre, onde a gente sentava e a água ia batendo na pedra. Parecia hidromassagem. Na saída, de repente, ouvi um tchau. Quando olhei, para ver a expressão, era ele fazendo: tchau, obrigada, Rio! E mandava beijo para o Paraopeba, como se estivesse entendendo que aquele seria o último banho. Na realidade, foi. Logo depois a lama chegou – Eliana. 

Por toda a vida

Os passos da infância eram soltos e ligeiros quando a pescadora percebeu como era a presença do rio na vida dela. Embora, por um lado, a atividade de pesca profissional só tenha chegado em 2012 através do registro na carteirinha, de outro, se tem uma coisa que ela sabe bem é que o rio a atravessa por toda a vida. Das incontáveis memórias perto das águas, ela lembra dos primeiros contatos através do pai, que também era pescador, “ele fazia um varal de peixe na praia. Lembro da gente correndo e passando por baixo dos peixes, o rabo deles batendo na gente, lá em Alcobaça”, conta ela aos risos. 

Falar sobre o rio para quem fazia parte daquelas águas como o casal não é mesmo uma tarefa fácil. Na realidade, a única coisa simples é perceber, através do que os olhos de cada um narram, o que é a dor de ter que se afastar diariamente do que eles mais amavam. A pesca, que era a fonte de renda e lazer para vários membros da família, hoje é sinônimo de saudade: “perder o contato com o rio foi o mais triste. O pescador sem água, como ele faz?” pergunta Paulo. 

É difícil você sentar na beira do rio e saber que o que tem ali você não tem poder de limpar, que não está mais na sua mão. Porque quem é pescador entra na água e limpa. Se tem uma sacola plástica, uma garrafa, a gente cata, recicla. Somos os primeiros a sentir a água. Como mãe e filho: mesmo ele não falando, você olha pra ele e sente – Eliana. 

Algumas memórias são engraçadas. Eles lembram, por exemplo, da tarrafa que Paulo jogou à noite, ao acaso, e vieram 28 curimatãs na rede. Foi o sustento da semana toda. E fora essa tiveram muitas outras: certa vez foram 60 quilos de mandi amarelo. Isso sem contar o episódio em que ele apanhou de um Pacamã gigante quando tentou limpá-lo no tanque de casa. 

Nas lembranças, os lajeões dentro do rio, os lugares onde podiam se banhar sem medo. A confiança de quem vivia ali nas águas do Paraopeba era uma relação única, de família, de pertencer, de ser com o rio e de existir com ele. Além dos medos de tirar traíra da rede, nenhum outro era maior que não poder sentir aquilo todos os dias.

“Na realidade agora é assim, né! Não estamos mais prendendo o peixe, a gente é que está preso”, Eliana Marques. Foto: Tainara Torres/ Instituto Guaicuy

E vem cá, tem um jeito certo de pescar? 

A pesca é um trabalho árduo e envolve uma rotina pesada, mas também muito prazerosa. “Começa de madrugada, a gente acorda, faz o nosso cafezinho, e tem que ser no fogão de lenha porque eu gosto do cheiro da fumaça. Pegamos nossas coisas e entramos no barco pra correr nossas redes”, conta Eliana. São falas de saudade, tanto da pescaria profissional, em Felixlândia, quanto a amadora, que praticavam em Cachoeira do Choro (Curvelo), cada uma dentro do formato permitido. “É um trabalho sério e são muitos gastos com materiais. Rede é um trem muito pesado, e quanto mais molhada mais pesada. Imagina ter que jogar isso 30 vezes no dia”, conta Paulo. 

Os dois mostram com orgulho os instrumentos de pesca, explicando cada um deles, as sensações de como era sair para pescar e as táticas para pegar cada tipo de peixe. Inclusive, eles revelam alguns detalhes preciosos: “para saber se está pescando certo você tem que conhecer o rio. Aqui a gente conhece cada pocinho. Precisa ter uma boa isca e saber qual o peixe que está correndo, porque o peixe tem dia e hora. Não é todo dia que você vai chegar e encontrar peixe, não. O curimatã é o peixe mais sem vergonha, corre o dia todo”, contam aos risos.  

Pescador que é pescador respeita o peixe. Temos todo um zelo e cuidado. Já ouvi dizer que quem pesca de rede é predador, mas não é. Não passamos nem perto do que a Vale fez no rio. Tiramos o peixe na época certa, no tamanho certo. Você respeita a Piracema, você respeita a vida que está no rio porque dela vem a sua sobrevivência. A Vale não respeita ninguém. Não respeitou a vida, a água, o peixe. Ser predador é isso. Ser pescador de rede, de tarrafa, de anzol, amador ou não, isso não destrói – Eliana

“Mas nem só de rede vive o pescador, não!”

Não é difícil imaginar os sorrisos por trás das máscaras de cada um em meio a tantas memórias. A mais interessante de todas certamente é voltar aquele sossego de quando podiam juntar as varinhas de pescar, uma latinha de minhocas e sentar à beira do rio. “Era o momento em que estava mais perto de Deus. Era um agradecimento tão grande dentro de mim por tudo aquilo que está ali que eu não sei explicar. Paz, tranquilidade, momento de reflexão da vida, da natureza, de olhar para toda aquela beleza à sua volta e sentir. Você não pensa em nada, nem na maldade do mundo”, relata Eliana. 

“A alegria de pegar na rede e começar a puxar. O peixe puxando lá em baixo e você ansioso pra chegar com eles em cima. O mais triste foi perder o contato com o rio”, Paulo Leite. Foto: Tainara Torres / Instituto Guaicuy.

Paulo e ela hoje tentam se adaptar a uma nova rotina, “eu não sei ser dona de casa, porque meu desejo está em outro lugar. Nunca tive esse sonho e hoje a minha vida integral é dentro de casa. Não tenho nenhuma atividade, nenhuma renda e, com tudo isso, ainda não consegui achar um foco, alguma coisa que me tire desse estado que eu tô. Parece que estou suspensa no ar e que meus pés não encostam no chão. A sensação é a de que eu não consigo firmeza nas minhas pernas pra continuar caminhando, mas a fé me motiva e confio em Deus. Luto porque quero justiça, quero ver a Vale sendo punida. É uma luta por justiça”, desabafa ela.

Texto da série Histórias de Pescadores do Boletim Piracema. 2ª edição. Por: Tainara Torres.

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